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| Mónica Baldaque |
"Nasci na província, à
meia-noite de um domingo de 12 para 13 de maio. Descia a procissão das velas
pela quinta dos meus avós, e a lua em quarto-crescente brilhava no céu
azul-limpo.
Nasci num dos quartos do
mirante, sobre o magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e
caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto
compassado dos cavadores me inquietava como se preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma
aldeia, mas um lugar: lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do
tempo de Egas Moniz. Aquela casa fora dos meus bisavós, e passara para minha
avó e a sua irmã, espanholas de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me
tirou o coração e o escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e
continua, para sempre.
A família do Douro era uma
gente estranha. Liam muito, escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro,
e um temperamento feroz; para eles, nada era verdadeiramente importante, nem
viver nem morrer, nem ser isto ou aquilo, e geriam com desprendimento as
fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo
fantástico para uma criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que
aquilo que era natural eu dar, o que significava que vivia ali num estado de
liberdade e de confiança nos adultos.
Depois de um mês de férias no
Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má
pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos
estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Nas tardes de muito calor, eu
lia na sala às escuras as histórias da Elen Fortún, em espanhol: os dias de
Célia e as suas três primitas que viviam em Madrid e passavam férias em
Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me
tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas e
agitadas.
Com os meus pais, as regras
mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no
conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse
exprimir-me.
Chorava, quando vinha do
Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer."
Mónica Baldaque in Jornal de Letras", nº116, de
23 de Julho de 2013

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