domingo, 5 de janeiro de 2014

Dias Contados





Mónica Baldaque


"Nasci na província, à meia-noite de um domingo de 12 para 13 de maio. Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua  em quarto-crescente brilhava no céu azul-limpo.
Nasci num dos quartos do mirante, sobre o magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto compassado dos cavadores me inquietava como se preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar: lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz. Aquela casa fora dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua irmã, espanholas de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e continua, para sempre.
A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito, escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo fantástico para uma criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural eu dar, o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos adultos.
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Nas tardes de muito calor, eu lia na sala às escuras as histórias da Elen Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as suas três primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas e agitadas.
Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse exprimir-me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer."

Mónica Baldaque  in Jornal de Letras", nº116, de 23 de Julho de 2013 

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