domingo, 26 de janeiro de 2014

Douro da infância de Armanda Passos




Pintura de Armanda Passos


À noite, a minha avó, leva-me ao colo pelo caminho principal da quinta para fechar o portão e diz-me: Não olhes para trás que vês o Diabo.
Escondo-me ao pescoço. As sombras das árvores fazem-me figuras, fecho os olhos, espreito quando se movem na aragem. Tenho medo, ela não. Mas também não lhe digo. Continuo ao colo e continuo a ter cinco anos.
Maria Emília Queiroz Marinho Bernardo, avó alta e magra de pernas secas, tinha na voz o comando de quem vivia a dar ordens e a organizar a vida, sozinha. Viúva e filha mais velha de 6 irmãos. Nasceu, viveu e casou na quinta da Vacaria.
O verão da minha infância foi passado no Douro, com a avó, numa quinta onde nasci e que há muito foi cortada por uma estrada, no meio de trovoadas sufocantes, mais as histórias sem fim que pairam reais no meu imaginário infantil. Desde a capela com os santos milagrosos, os frades enterrados nela, até ao corredor de glicínias que perfumava todo o jardim, onde o rio Corgo circundava a terra e deixava ilhas para os piqueniques. Lembro-me dos lagares, do calor das uvas quando colhidas, do cheiro do vinho quando fermentado, do frio das adegas quando cerradas, do terror das sardoniscas quando passeavam o tecto caiado ao dormir a sesta. Lembro-me, do comboio de cortinas que fechava para não ver o escuro dos túneis, do abismo do rio, terra acima em direcção a um lugar mágico mas difuso, com os olhos de não voltar, do calor desses verões, dos insectos que bailavam junto às videiras, do revisor que cumprimentava a avó, do comboio que esperava por ela, do cheiro do carvão, do vapor nos meus olhos, das viagens infinitas e das nuvens a ameaçarem sempre trovoada.
Do Douro aprendi, desde pequena, a olhar para dois sítios: para o rio e para o céu.

 Armanda Passos - In catálogo da exposição "Obra Gráfica".


Nota: Armanda Passos nasceu em 1944, no Peso da Régua. Licenciou-se em Artes Plásticas na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Expõe desde 1976.Foi professora de Tecnologia da Serigrafia no Centro de Reabilitação Vocacional da Granja, monitora de Tecnologia da Gravura na ESBAP (1977-1979) e membro do grupo "Série" Artistas Impressores".
Sobre ela  a romancista  Lídia Jorge escreveu o seguinte: "Não sei que lugar ocupará na História de Arte a obra de Armanda Passos, pois a História de todas as coisas parece ser agora um círculo em que tudo é mostrado e visto em simultâneo, a maior parte das vezes, sem uma única legenda. Não sei o que o futuro dirá. Sei apenas o seu contrário. Que as figuras de Armanda Passos contam uma viagem aérea que vale a pena manter por perto. Esta pintora tem o dom do desenho, da cor, da interpretação, e o supremo dom da transfiguração, uma integridade absoluta como acontece com os grandes criadores. Não sei o que a História de Arte dirá. Sei que vale a pena ter as suas representações por perto para embelezar o nosso quotidiano e não sermos pessoas banais. Armanda Passos pertence à galeria dos artistas que escrevem a sua própria e inconfundível arte poética. E isso, para os atentos, é a mais importante das moedas de oiro que a pintura pode dar."

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