domingo, 29 de setembro de 2019

Tanta beleza!

Foto:josé alfredo almeida




Já não tenho olhos
para mais beleza:
gastei-os no Douro.


M. Hercília Agarez

sábado, 28 de setembro de 2019

Para turista ver




VINDIMA

[…] Os homens
andam com os cestos às costas, assobiam,
baralham as ideias, assobiam,
pisam as uvas, envasilham
e dizem: prò ano será melhor.

(No ano seguinte é a mesma coisa).

António Cabral, POEMAS DURIENSES


    É, na verdade, uma imagem evocativa das vindimas no Douro em tempos idos. Eram assim os cestos vindimeiros, cheios até às beiças, alombados sobre capucha e troixa, em protecção possível de pescoços sacrificados. Além das asas de segurar, uma frontal, reforçadas à medida do peso a carregar. Na fotografia não se vê, mas a média eram sessenta quilos. Também não se sentem o sabor e o aroma do melaço das uvas espapaçadas pelo caminho.
    Os carregadores, machos de carga, parecem elementos de um rancho folclórico. As camisas brancas, desnodoadas, não mostram manchas de suor nos sovacos. Em posição de homo pré sapiens, têm força de Hércules, humilham-se, humildam-se, obedecem, sujeitam-se, prestam vassalagem a senhores de quem são escravos, baixam a grimpa até a ordens de feitores. Aí está, na foto, um deles. Erecto, vertical como fio-de- prumo, como a aguilhada da sua altura.  Que empunha, como ceptro, simbolizando um poder conferido pelo patrão, em recompensa de trabalhos dedicados e cúmplices. Um trabalhador cujo trabalho é mandar trabalhar, fiscalizar quem trabalha, recrutar gentes para as vindimas, não os deixar pôr pé em ramo verde. Um alguém socialmente situado mais perto do poder do que do ser.
    Fala-se pouco desta figura, omnipresente em trabalhos de quintas. Capataz também lhe era chamadouro. Mesma a função, mesmo o estatuto, não mesma a altivez, a sobranceria. Há de tudo em tudo. No seu romance VINDIMA, de acção localizada algures entre Sabrosa e o Pinhão, escreve Miguel Torga:

A natureza do Seara [feitor] oscilava entre a voz do sangue e a letra do contato que fizera há anos com o senhor Lopes. A lama em que nascera e onde, de resto, sujava continuamente botas de bezerra, falava-lhe de una naturalidade original, de berço, só rendida a uma lei: - ao aguilhão da fome. Mas o convívio, embora perfilado, com o luxo e as riquezas do patrão, tinha também o seu encanto. […]   evolava-se dele o perfume de uma consideração social que o entontecia.

    A estrada calcetada, plana, larga, feita para os poucos carros, para as carreiras. Assim fossem os caminhos de sobe e desce, enterroados ou lamacentos, entre vinhedos em socalcos e lagar de fim de fadigas, a mais das vezes pertença dos proprietários, parte integrante do complexo agrícola e habitacional onde vinhos nascem para o mundo, gritando, aos quatro ventos, que são Douro. Num vaivém vigiado, numa azáfama sem tréguas, a não ser para emborcar a malga do caldo e o responsado apresigo, os homens  pensam em encontros escondidos com as conversadas e suspiram pela palha das enxergas que nos cardenhos lhes servem de camas. É a diferença entre realidade e cartaz turístico. Very typical !


M. Hercília Agarez
Vila Real, 28 de Setembro

Uva passa

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Tudo bem

Foto:josé alfredo almeida




que serenidade vens entregar
à mansidão das minhas águas
que ninguém ousou tocar ou
contemplar

(...)

com tanto amor




António Cardoso Pinto

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Que lugar é este?

Foto:josé alfredo almeida


Que lugar é este, que lugar é este? 
como estás ainda no meu coração? 



Antonio Gamoneda

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Pensei que sempre estarias aí

Foto:josé alfredo almeida





"Escreveste há tempos numa carta para ninguém «pensei que sempre estarias aí». Agora sabes que não há presenças perenes nem ausências definitivas. Basta folhear as páginas dos livros para escutar as conversas entre poetas, um diálogo tímido que se trava e acelera no excesso que não cabe em lado nenhum. Oferecem-se uns aos outros as mais brutais ou gentis palavras. Palavras velhas como o mundo, tantas vezes ditas e escritas que dele se separaram há muito, mas às vezes voltam para o saudar. Perdem-se, encontram-se e perdem-se e encontram-se. E assim por diante."


Mariana Pinto dos Santos

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Meu Outono

Foto:josé alfredo almeida 




Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]




Fernando Pessoa

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Navegar sem rumo

Foto:jose alfredo almeida



Agora que o silêncio é um mar sem ondas, 
E que nele posso navegar sem rumo, 
Não respondas 
Às urgentes perguntas 
Que te fiz. 
Deixa-me ser feliz 
Assim, 
Já tão longe de ti como de mim. 

Perde-se a vida a desejá-la tanto. 
Só soubemos sofrer, enquanto 
O nosso amor 
Durou. 
Mas o tempo passou, 
Há calmaria... 
Não perturbes a paz que me foi dada. 
Ouvir de novo a tua voz seria 
Matar a sede com água salgada.



Miguel Torga

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Toca o sino

Foto:josé alfredo almeida


Sinos batem,
Outro domingo,
Outro domínio.


Francismar Prestes Leal

domingo, 15 de setembro de 2019

Pescador da paisagem

Foto:josé alfredo almeida



"Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes."

Fernando Pessoa

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Virginal

Foto:josé alfredo almeida



Não penso para onde foste porque o meu peito, sem ti, fica atravessado por lâminas, tenho um silêncio dentro.
Toco os sítios onde estiveram as tuas mãos.
Sinto o que sentiste.





José Luís Peixoto

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Olhos de gato



Foto:josé alfredo almeida


olhos de gato
luz dos faróis na noite
pulo no mato




Carlos Seabra

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

domingo, 8 de setembro de 2019

Também posso jogar?





Eu acordava de sonhos, para mergulhar num rio de emoções.
Eram as férias grandes.
O tempo parecia mais elástico,
do que a fisga que eu levava no meu bolso,
nunca fisguei nenhum pássaro (de propósito), era só para fazer ver.

Eu e os meus amigos, o sol ainda nascente a espreitar os nossos passos.
O rio àquela hora da manhã, podia esperar. A bola não. Novinha em folha, prémio de um furo num tasco lá na nossa rua, onde além de variadas guloseimas, vendiam nougats, por sinal os melhores do mundo. E gelados com brindes de desenhos animados.

Uma pedra de cada lado e as balizas estavam feitas.
Havia regras estipuladas e outras feitas na hora, uma rasteira uma canelada com quem ninguém contava...

A bola brilhava, o sol assistia de camarote.
Fintas de mestres, golos. Juntava-se a rapaziada a assistir, a torcer a assobiar.
No meio do entusiasmo, ouvia-se uma Mãe a chamar:
O almoço está na mesa!
Estamos já nos pênaltis!...
Depois, com o estômago a dar horas íamos todos a correr. Cada um para a sua casa.

No almoço, a germinarem ideias. Brincar ao berlinde ou às cartas, à carica ou ficar a ler um livro até o calor amainar?

Subíamos a uma árvore e ficávamos a ver o rio ali tão perto de nós, inventávamos feitos heróicos, em que ninguém acreditava ou falávamos de algo que deu na televisão, às vezes, construíamos estradas em riscos de giz, onde pequenos automóveis circulavam pelas nossas mãos, alguns a grande velocidade. Prendas que alguns de nós tinham ganho no último Natal.
Já a tarde ia alta, era hora de ir para o rio. Nas mãos, pequenas pedras a fazerem ricochete na água.
O riso límpido das lavadeiras, recordo-o como revoadas de pássaros a levantarem voo. Perdiam-se nos ares depois de ecoarem pelo Douro. Na água, espuma de sabão e o barulho quase sincronizado da roupa a bater nas pedras do rio.
Nadávamos, exibíamos proezas, e antes de irmos embora, mais um jogo, onde no final todos ficávamos a ganhar.


Ao princípio da noite depois do jantar, sentados em escadas ou em muros, ríamos de tudo e de nada.
Ali na nossa rua, duas pedras a fazerem de balizas. Começava o jogo, o último do dia. A bola quase novinha em folha, de pé em pé. Marquei um golo e alguém disse que não valeu... Havia sempre um intervalo quando avistávamos um carro ao fundo da estrada. E nós sonhávamos acordados, com a visão rápida e fulgurante de um Toyota.

Retomávamos o jogo.
Nas portas mulheres e homens sentados a falarem de que algo foi mandado para o espaço, outros conversavam sobre o fim do mundo.

A lua branca e redonda, iluminava toda a rua. Enquanto driblava a bola, de repente uma voz de rapariga:
Também posso jogar?
Acabou o jogo!

Quase a adormecer, eu olhava para a bola que me iluminava por dentro, como a lua a nossa rua.
E sonhei com a voz atrevida da rapariga. Também posso jogar?

Ana de Melo

sábado, 7 de setembro de 2019

A leitora

Pintura de Margarida Almeida



A leitora abre o espaço num sopro subtil. 
Lê na violência e no espanto da brancura. 
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa. 
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco. 
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra. 

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento. 
Desce pelos bosques como uma menina descalça. 
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva 
em chama de água. Na imaculada superfície 
ou na espessura latejante, despe-se das formas, 

branca no ar. É um torvelinho harmonioso, 
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira 
na sede obscura de palavras verticais. 
A água move-se até ao seu princípio puro. 
O poema é um arbusto que não cessa de tremer. 


António Ramos Rosa

domingo, 1 de setembro de 2019

É Setembro

Foto:josé alfredo almeida



Aproveitemos com tempo
o tempo a haver:
mais doce, a dois.



M. Hercília Agarez