sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Inesquecível

Foto: josé alfredo almeida


Eu escrevi um poema triste 
E belo, apenas da sua tristeza. 
Não vem de ti essa tristeza 
Mas das mudanças do Tempo, 
Que ora nos traz esperanças 
Ora nos dá incerteza... 
Nem importa, ao velho Tempo, 
Que sejas fiel ou infiel... 
Eu fico, junto à correnteza, 
Olhando as horas tão breves... 
E das cartas que me escreves 
Faço barcos de papel! 

Mário Quintana

Com muita luz

Foto: josé alfredo almeida

     Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.

cristina campo

Tudo

Foto: josé alfredo almeida


basta-me que sorrias 
basta poder deitar-me ao teu lado 
e não estar só

basta-me que sorrias

João Ricardo Lopes

A vida acontece

Foto: josé alfredo almeida


A vida acontece
A todo o momento
E dela vivemos
Pequenos fragmentos
Que falam do todo
Um piscar de olhos
Um bater de asas
Esquivo vislumbre
Lembrança distante
Vive-se toda a vida
Num único momento

Luís Ene

Contos Sombrios





Contos Sombrios
Autor: Mónica Baldaque

Editora:Babel

"Na vida, é mais o que ficou por dizer, 
do que aquilo que é dito"


"Marta Carolina, depois da morte de sua avó Joana, vai instalar-se na casa de família, no Douro, com a tarefa penosa de a desfazer, pois ela destina-se a ser vendida.
Aí, sozinha, recolhia nesses espaço sagrado de memórias e de sonho, convoca vários personagens que conheceu, e como através de uma porta estreita, entreaberta, ouve-os contar as suas histórias, cheias de lacunas e abismos.
Em todas elas está em causa o acordo com a própria vida. O desejo de destruição, o conflito, a morte, o crime, rondam essas vidas aparentes e sombrias. São histórias de despedida."

Mónica Baldaque

(Re)Conhecer a Régua-183



    A  então vila do Peso da  Régua - hoje cidade - , aqui numa nítida vista geral dos ano 70 que muito nos ajuda a compreender o seu crescimento urbanístico e as transformações nas margens do rio....
     Quem é que diz que a paisagem natural não mudou....!

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Oiro do dia

Foto: josé alfredo almeida


Colhe

todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.

Eugénio de Andrade

É uma sorte

Foto: josé alfredo almeida
 

A Régua, junto às águas do rio Douro, hoje às 7.00 horas...o cenário era este, cheio de luz.Como já disse,acordar aqui é um privilégio...
É uma sorte.  

Viajar com...João de Araújo Correia







Viajar com...João de Araújo Correia
Autores: João Bigotte Chorão e José Braga-Amaral
Edição da Delegação Regional da Cultura do Norte/Edições Caixotim-2005





Viajar com João de Araújo Correia é viajar pelo país real, o país vinhateiro, o país camiliano. São viagens rápidas mas não de voo de pássaro, porque a curiosidade e o dom de observação as enriquecem de notas incisivas. Mas a Medicina a tempo inteiro e a Literatura só a horas mortas não lhe deram folgas para viajar e muito fora de portas.
(...)
Se descia do Douro à foz do Tejo, era porque Lisboa o homenageava ou vinha falar  em homenagem a alguém - fosse o seu mestre Trindade Coelho, fosse o seu amigo Domingos Monteiro. Aproveitava essas vindas para bater à porta de escritor do seu particular apreço, como Fidelino de Figueiredo, já nesse melancólico crepúsculo que só lhe permitia comunicar por escrito.E, certamente, se encontrava com Aquilino Ribeiro, que, com a sua autoridade de grande senhor da língua, chamava a João de Araújo Correia "mestre de nós todos".
(...)
João de Araújo Correia é fiel às suas raízes geográficas - o seu Douro, o seu "país vinhateiro" - à sua família pelo sangue e o espírito. Vemo-lo aproximar-se das suas estantes, onde os livros se dispõem em boa ordem. Não estão ali imóveis e inúteis para serem admirados pelas encadernações de preço, mas para se consultarem e relerem, no gosto sempre renovado, pelo bom sabor da língua portuguesa.



João Bigotte Chorão e José Braga-Amaral

Tons de outono


(Re)Conhecer a Régua-182



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Serenamente

Foto: josé alfredo almeida


Creio que foi o sorriso, 
o sorriso foi quem abriu a porta. 
Era um sorriso com muita luz 
lá dentro, apetecia 
entrar nele, tirar a roupa, ficar 
nu dentro daquele sorriso. 
Correr, navegar, morrer naquele sorriso. 

Eugénio de Andrade

Ler o rio

Foto: josé alfredo Almeida

O meu olhar da Régua, hoje ao  amanhecer junto ao rio, às 6.30 horas... 



De nadas fiz o todo dos meus dias
E dei à vida a freima de a viver
Inutilmente, embora, quis honrá-la
Como se de um sagrado dote se tratasse.
Agora, posso ter a paz cansada
De quem lucidamente foi fiel
Ao seu destino:
Impuro, a oficiar nas aras da pureza,
Sonâmbulo, a tactear a natureza,
E agonizante já deste menino

Miguel Torga

Povo que (ainda) lavas no rio

Foto: josé alfredo almeida


Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!

Pedro Homem de Melo

Como eu vejo

Foto: josé alfredo almeida

  A Régua, ontem ao amanhecer, eram 16.45 horas...


Não sei se vês, como eu  vejo,
Pacificado,
(...)
Serena
Sobre o vale.
Sobre o rio
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.

Miguel Torga

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Sintonia

Foto: josé alfredo almeida

Tarde triste.
É o Outono doente que começa.
Cada folha parece que tem pressa
de morrer
Madura e fatigada, a natureza,
Roída por não seu que súbita incerteza,
Até nos frutos quer apodrecer.

E há um desalento igual dentro de mim.
Uma renúncia assim
Calada e conformada.
Perdi o gosto verde de cantar.
A emoção vem à tona e degenera,
Infecunda, a negar
As muitas flores que dei na Primavera.

Miguel Torga 

Ler João de Araújo Correia-49





                        João de Araújo Correia in "Lira Familiar"

Rama dos sentidos

Foto: josé alfredo almeida

Tarde serena, com versos maduros
a reluzir na rama dos sentidos.
Tento colher os mais apetecidos,
Mas não chego a nenhum.
Anão nas horas cruciais da vida,
Em que o triunfo exige outra medida,
Deixo fugir das mãos os sonhos um a um.

Miguel Torga

Pudessem meus olhos repousar

Foto:josé alfredo almeida


Pudessem os meus olhos repousar,
cansados já que são da luz do dia,
no interior das tuas mãos cerradas
e nelas permanecer até
ao quebrar da manhã e em ti,
por fim, anoitecer.


Alexandra Malheiro

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Meu berço

Foto: josé alfredo almeida


"S. Martinho de Anta, 22 de Setembro de 1994 - Este meu apego ao berço já não é tanto um mistério de raízes como um refrigério de cicatrizes."

Miguel Torga

Escrever a Luz

Foto: josé alfredo almeida


A Régua, hoje as 6.45 horas...
Foi com esta Luz.. 
que acordei dos meus sonhos!


escreve-nos
dizem os teus olhos
e eu escrevo-nos
e escrevo-os
os teus olhos na impressão da tinta
os teus olhos impressos
nos meus
os teus olhos nas letras
os teus olhos nas frases
os teus olhos nos poemas
os poemas dos teus olhos
e dizem
escreve-nos
e eu escrevo-nos
e eu escrevo-os
com a certeza
de que é impossível
escrever a luz

Afonso de Melo

Tardes d`ouro

Foto: josé alfredo almeida

E, contudo, é bonito
O entardecer,
A luz poente cai do céu vazio
Sobre o tecto macio
Da ramagem
E fica derramada em cada folha.
Imóvel, a paisagem
Parece adormecida
Nos olhos de quem olha.
A brisa leva o tempo
Sem destino.
E o rumor citadino
Ondula nos ouvidos
Distraídos
Dos que vão pelas rua caminhando
Devagar
E como que sonhando,
Sem sonhar

Miguel Torga  

Casa Paterna

Foto: josé alfredo almeida


"S. Martinho de Anta, 5 de Setembro de 1982 - A casa paterna. A matriz sagrada da família. Mas começo a não ter palavras para a emoção que sinto quando entro nela. Engulo-as todas."

Miguel Torga

Abrir uma janela

Foto: josé alfredo almeida


Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro 

Resguardo

Foto: josé alfredo almeida

Quero-te num poema
Viva e transfigurada,
Sentada
No banco de jardim
De versos outonais,
A ver nos horizontes irreais
Sumir-se o tempo, o burlador
Do amor,
Que diz que volta, mas não volta mais.

Miguel Torga

domingo, 26 de outubro de 2014

Eterno Outono

Foto: josé alfredo almeida



Ainda não acabou o verão
Cuidado como me dizes,
uma só palavra tua, 
pode causar um incêndio.

Regresso àquele Verão

Foto: josé alfredo almeida


Muitas vezes regresso àquele Verão. Ao rio. Não sei o que teria sido desse Verão sem o rio. O que teria sido de mim, nesse Verão, sem o rio. Sem os amigos que o habitavam. Sem o baralho de cartas e as tiras de entremeada assada nas brasas. Sem a cerveja. Teria sido um Verão menos longo, menos interessante, menos tudo. E depois havia todos aqueles corpos ao sol. Sobre as pedras. Lembro-me que uma vez decidimos (nós os rapazes) nadar nus. Elas riam-se. Sussurravam. Alguns deles, mais tarde, acabaram por casar com algumas delas. Não sei se esse banho nu teve influência na decisão.


manuel a. domingos

De volta

Foto josé  alfredo alneida


Uma onda e depois outra:

o mundo é feito
de repetições.



josé carlos barros

(Re)Conhecer a Régua-181





A Régua, em 1932

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Tomar banho no rio...

Foto: josé alfredo almeida

Não sei se o céu e
o inferno existem
mas sei que os anjos não voam
movidos pela felicidade
mas pela mágoa

encontro-os muitas vezes
nos cafés tardios
em esquinas quebradas
e sei o que é preciso
para os levantar
do chão

por mais pesados
que sejam os seus sonhos
os anjos não são muito
diferentes de nós
apenas voam
livres

Luís Ene

Até as nuvens ficam

Foto: josé alfredo almeida



De vez em quando,
fazes a conta de cor e dizes apesar de tudo, inspiras-me,
e não queres saber muito mais do que isto


Marta Chaves

Deixa-me ver esta luz

Foto: josé alfredo almeida

E os meus olhos.
Que se lembram.
Lembram-se de ver.


Rui Nunes

Linha de água

Foto: josé alfredo almeida

às vezes convenço-me de que sei tudo sobre os teus olhos
mas não sei se neles existem marés vivas
e a vontade atlântica das viagens
e não sei
se os teus olhos sou eu
se calhar
que os invento


Afonso de Melo

(Re)Conhecer a Régua-180





    A Régua, uma vista parcial da parte alta, conhecida pelo Peso, nos finais do séc.XIX....
    Podemos comparar e ver o que (nada) mudou e o que ainda permanece quase de forma intemporal.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Tudo se repete

Foto: josé alfredo almeida


Antes,
douro abaixo
douro acima,
o barco rabelo,
numa azáfama perigosa,
numa aventura difícil.

Agora,
há um cais,
um porto onde acostar,
o sortilégio de um lugar onde se volta.

Água e barco,
barco e água,
inseparáveis de longa data,
tão juntos,
tão íntimos…

Horas e horas de sussurros e segredos,
desde a aurora ao pôr do sol.

Cai a noite.
Noite de insónia feliz!

A lua sorri…



Ana Freitas

(Re)Conhecer a Régua-179





 Esta imagem de uma vista da Régua é antiga da Régua, mas nem lhe  sei fixar a data certa...
 O que sei é que da  foz do "magro"  rio Varosa...avista-se  o "gordo" rio Douro, a correr serenamente, a silhueta da vila- hoje cidade - desenhada nos montes circundantes e deixa-nos descobrir na margem direita o seu casario até ao frondoso  vale de Jugueiros e ao cimo de Loureiro.

Cadernos de Sombras



Jaime Silva é natural de Peso da Régua, onde nasceu em 1947, Jaime Silva é licenciado pela Escola Superior de Belas Artes do Porto. Foi fundador do Grupo Puzzle em 1975, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris em 1977 e 1978 e professor de Pintura no AR.CO de 1983 a 1987. Professor responsável do Curso de Pintura da Sociedade Nacional de Belas Artes desde 1987, foi director artístico da Galeria Municipal de Montijo de 1999 a 2011.Fez parte do júri de várias exposições e comissariou várias outras. Já em 2014, coordenou a exposição ARTEHOJE na SNBA. Foi agraciado com a medalha de mérito atribuída pela Câmara Municipal de Peso da Régua.
Segundo o texto que acompanha a exposição, da autoria do Professor José-Augusto França, o pintor está consciente da problemática e da verdade do Desenho, como “a razão de ser de todo o gesto que há milénios o homem pratica para se integrar na Natureza – sempre na relação de cheios e vazios do grande espaço que habita.”
Nessa exacta medida, estabelecem os desenhos dos “Cadernos de Sombras” um “equilíbrio dinâmico entre o cheio e o vazio (…) o desenhado e o não-desenhado”, articulando-se “os grandes espaços negros das folhas (…) com os grandes espaços brancos do papel, entre ambos se dispondo o traçado das linhas que assegura a articulação orgânica da folha desenhada, na sua totalidade de opostos e contradições”.

1932

Foto: josé alfredo almeida


Uma magnifica  arte na Régua que está  exposta no átrio do edifício da Casa do Douro este vitral  - ou esta sua parte- pintado pelo  mestre Lino António
Esta foi  uma singela  homenagem à Lavoura Duriense e aos homens que cultivam a vinha e produzem o Vinho do Porto.
Mas é também uma  data histórica a fixar: 1932.
E, sobretudo,  lembrar e a reflectir no que hoje se está a passar no país e no Douro: vivem-se  tempos muito difíceis.
Hoje a  resposta aos problemas das pessoas e dos novos lavradores durienses já não passam pela defesa de uma organização que os defenda do mundo global - neoliberal - e dos  grandes interesses económicos e financeiros.
Em 1932, a  Casa do Douro - a Casa dos Lavradores dos Douro -foi criada como resultante do movimento resultante associativo da vitivinicultura duriense.
Em 2014,  a Casa do Douro como voz dos pequenos e dos frágeis lavradores morre...por decisão de quem não conhece o Douro e, se calhar, o país, nem os Lavradores que fazem o melhor vinho do mundo.

José Alfredo Almeida

Atravessar o rio

Foto: josé alfredo almeida

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Caldas do Moledo

Foto: josé alfredo almeida


Decifra-me, mas não me conclua, eu posso te surpreender.


Clarice Lispector



Eu nasci neste lugar.
As minhas origens são as  Caldas do Moledo, onde fica este  belo e único parque termal do Douro.
Aqui está toda a minha  minha infância  e os  únicos  e credíveis  testemunhar dos meus primeiros passos que aprendi a dar na dureza dos  caminhos da minha existência.  
Aqui está a minha primeira escola.
E todo mais que eu possuo, tudo   o que me pertence. 
Aqui estão  espalhados, no meio das folhas caídas, os meus primeiros sonhos, alguns pintados a cor de rosa, com o era a casa onde eu nasci...Verdade.
As Caldas do Moledo são o meu lugar, o meu universo.
Mais tarde, ou mais cedo, volta-se sempre ao lugar onde se nasceu.
Eu nasci neste lugar. 
Fica no mo mapa da pequenez e no da minha geografia sentimental. Aqui  passa um  rio, o grande Douro, que me leva uma foz e me faz regressar: a tudo o que já não possuo, mas se vê  dentro do meu coração.
E, como diz o poeta Tolentino de Mendonça: 

"Tivesse ainda tempo e entregava-te 
o coração"


José Alfredo Almeida

(Re)Conhecer a Régua-178

Foto: Noel de Magalhães

O poeta nas mãos de Deus




Deve ter acabado de chover nesta terra adormecida na borda d’água deste rio de mau navegar. Da terra molhada levantam-se aromas de vida e dos plátanos majestosos caiem gotas cristalinas que me entram pelos olhos adentro. É tempo de espreguiçar a alma... Assim falou o misterioso viajante, segundos antes de adormecer no único banco do Moledo aonde o Sol da tarde ainda conseguia chegar.
Como ali tinha ido parar, ou porquê, não se sabe muito bem, mas isso era algo que o não importava... pensou, imediatamente antes de ouvir o sussurro das águas apressadas que o transportavam ao barulhento e majestoso Salão de Festas do Hotel Gomes.
Entre o Grande Hotel das Termas, a Estalagem do Almeida, o Petit-Hotel e o famoso Vilhena, passeavam os sapatinhos balneares das senhoras aquistas, protegidas pelas sombrinhas à brasileira, ora pela manhã, ora ao fim da tarde de regresso dos sulfurosos banhos. Ansiosas pela reconfortante refeição, com serviço de mesa recomendado com credenciais da monarquia, e à espera do “corte-e-costura” de língua que lhes animavam as noites de rescaldo duriense, enquanto os seus extremosos maridos se deleitavam nos prazeres de jogos, proibidos ou não, entre fumaças de charuto que condimentavam cálices de vinho fino.
E eis que outra vez a fachada do Hotel Gomes regressa ao espelho subconsciente do misterioso viajante para lhe trazer um sorriso balzaquiano capaz de atazanar as mais sossegadas almas.
Enigmaticamente por entre eminentes juristas em fim de carreira e bonacheirões comerciantes, deambulava o nosso viajante em busca de um lugar onde pudesse escrever um tranquilo postal. E, descobriu bem perto um harmonioso jardim de hortênsias floridas e esplendorosa begónias, sobranceiro ao rio. Faltava um tinteiro que um criado de invejável delicadeza rapidamente pousou a seu lado.
Finalmente escreveu: “Caldas do Moledo, 28 de Julho de 1925- Minha muito querida. Cheguei ontem à noite e apesar do isolamento e da falta do bulício é um encanto onde se passa dias admiráveis. O vale enorme que tem por sopé o Rio Douro, constituído por uma escadaria de parreiras e enorme vegetação. Não calculas querida amiga que ao admirar estas belezas só tenho em pensamento o não poder transformar em realidade o sonho que há tantos anos me traz absorvido”.
Era aqui a pouco menos de uma légua da então importante vila da Régua, viviam-se contrastes que oscilavam entre o borbulhar da natureza e os trompetes da noite e que tudo transformava em poesia.
É neste ambiente, encaixilhado num recanto do Douro – as Caldas do Moledo – que às oito horas da tarde do dia 15 do mês de Março do ano de 1902 nasce o filho dos donos do célebre Hotel Gomes, Antão de Moraes Gomes, filho legítimo de António Augusto Gomes e de Dona Sara de Moraes Gomes.
Assim reza o seu verdadeiro assento de nascimento, com o n.º 20 desse ano emitido pela Conservatória do Registo Civil de Peso da Régua. (Quatro dias antes daquele que muitos dos seus admiradores afirmaram e até escreveram).
Ninguém diria que aquela criança, que como todas se pressupõe bonita e rechonchuda, viria a deixar este mundo tão brevemente, com apenas vinte e quatro anos, vítima de meningite tuberculosa que o transportou até às trevas do Granjal, em Sernancelhe, a aldeia natal de seu pai. Todavia, foi enorme o seu curto percurso pela efémera vida terrena: «Devido ao seu temperamento irrequieto e anseios de independência absoluta, chegou por vezes a lutar com a miséria, que procurava ocultar estoicamente, até aos seus mais íntimos, que teriam um prazer imenso em afastar-lhe da vista esse negro espectro..» - afirma com propriedade e conhecimento o abade José Castro.

- Eu sou Antão: - Fui santo e fui pastor,
Voltei de novo, ao mando do senhor,
Tanger as vossas almas para o Céu

Assim se definiu o poeta, e bem, dirá a nossa assumida humildade, sem contudo deixar de concordar com João de Araújo Correia que na sua voz autorizada afirma: «Santo e Pastor? Poeta é o que fio o Antão de Moraes Gomes. E mereceu o título...». Esta sábia observação é tanto mais lapidar quanto se observa o facto de o poeta o ter conseguido ser com apenas uma obra publicada em vida - «Antão era Pastor», que a Companhia Portuguesa Editora Lda, do Porto, arriscou publicar, em data incerta, apenas se sabendo desta aventura três pormenores de vulto.
Não confiando no tipógrafo, Antão decidiu ditar ele próprio o livro, soneto a soneto. De todos os originais conhecidos, todos se encontravam escritos asa lápis. O seu conteúdo foi gerado entre 1920 e 1923.
Depois de ler «Antão era Pastor» ficam os traços bem definidos da poesia, do poeta e do seu estilo, da sua musicalidade e do seu conteúdo metafísico e espiritual? Pergunta-se. Chegará este livro para definir a alma do poeta?
Independentemente da natural ingenuidade que o leva a escrever aos catorze anos a célebre lírica de inocentes sextilhas « A Mariquinhas», não é possível analisar o peso do conteúdo de Antão de Moraes Gomes sem digerir os cerca de trinta sonetos inéditos que após a sua morte deram à página pela mão de um Abade de Tarouca – José Castro – que os fez publicar no semanário “Bandarra” de Lisboa.
Contudo, já antes o tinha descoberto o então célebre poeta da capital Afonso Duarte, numa sua visita às termas, fazendo disso referência em carta dirigida ao mestre Osório de Oliveira, de Coimbra, escrevendo a dado passo: « ... e os que morreram os vinte anos, como esse extraordinário moço que eu conheci numas termas do Norte, no Moledo, quasi desprezado de todo o convívio, o meu querido Antão de Moraes Gomes. Que galeria de mortos, amigo e de um real valor eu tenho aqui na minha estante- os meus mortos sem que eu saiba ou possa falar deles!».
Ao encontro deste lamento compreendido vem João Araújo Correia, ao referir-se ao poeta na relação com o seu tempo e lugar: « ... passou despercebido no seu berço... a Régua se reparou em Moraes Gomes, foi devido a umas gravatas berrantes ou coletes de alta fantasia que levava ao cinema...» para mais adiante salientar: «... Antão de Moraes Gomes, com gravatas e coletes, cometeu o pecado de Balzac em ponto pequenino».
Assim enquanto no seu livro único, e por detrás de uma descrição eivada de algum bucolismo, o poeta retrata as suas preocupações quotidianas, ambiências terrenas e as liga sempre ao fenómeno sagrado, chegando a dialogar de perto com a morte, nos seus poemas soltos e inéditos do Bandarra, o nosso esquecido Antão despe-se completamente, e deixa transparecer paixões enigmáticas e valores, resumos de vida e certezas de morte, que a cada passo se encontram em versos e estrofes:

Quando vem Maio, com seu ar de festa,
Em ti negra saudade se adivinha:
E a tua sorte bem igual à minha,
Já dos nosso bons tempos nada resta

Ou então, a tal paixão proibida, ou impossível...

Meu Amor, um perfume como o teu,
Mal posso imaginar donde provem...
Certo, não vem da Terra, é odor do Céu
O perfume, que a tua carne tem

A mensagem quase premonitória da morte, a ligação panteísta da imagem humana e terrena ao divino, a mãe natura que o rodeia e a paixão inconfessável e enigmática, são, definitivamente, os temas recorrentes na poesia de Antão de Moraes Gomes, sem contudo deixar de ir ao encontro do pensamento poético- filosófico da sua época.
É neste conturbado rio de correntes e redemoinhos que o poeta Antão se encontra com aquilo a que mais tarde Adolfo Casais Monteiro viria a designar por “ libertação da palavra”. Aqui está o que melhor conseguiu o nosso poeta, que como diria o Abade José Castro « ... bem nítida ressaltará sempre a maneira original, inconfundível das suas poesias, todas inspiradas no meio ambiente. Idealiza muito, escrevendo pouco».
Restam contudo algumas questões que por certo valerá a pena deixar ecoar no salão da especulação poética. Qual seria o enigma de Antão de Moraes Gomes? Seria um pacto com Deus, ou simplesmente um olhar de Deus visto em cada uma das suas criações? E sendo assim porque deparamos com os enlevos de paixões tão ardentes como desconhecidas?
Para este poeta, para este homem de poucos rastos, volto aos pensamentos do Abade: «Deus o tenha agora à sua mão direita ... Do Céu nos fale o ilustre morto!...».
É aqui que o súbito toque de um sino distante que ecoava por todo o vale nos faz regressar ao misterioso viajante, perdido na famosa avenida dos fabulosos plátanos, entre os grandes edifícios das termas e as calmas águas do rio.
Nas suas mãos, podia ver-se ainda um postal ilustrado, meio por escrever, mas que agora seria bastante pequeno para este enorme infinito duriense de memórias, de intensos aromas e de poesia.
A esta hora, já o rio respirava a bom dormir e a cálida noite esfriara. Havia uma penumbra envolta nas coisas, enquanto alguém passeava, devagarinho por entre as sombras dos enormes plátanos, olhando para a outra margem, com um livrinho de poemas para ler.
Acreditem ou não, ainda hoje não tenho a certeza, de quem ali teria estado, sem pressa de chegar à eternidade.
Se fui eu num regresso feliz aos lugares da minha infância, ou se o próprio poeta, que ali continuava, à procura de todos nós.

28 de Julho de 2000
José Alfredo Almeida

Ler João de Araújo Correia-48



                       João de Araújo Correia in  jornal "Defesa do Douro", de 6 de Dezembro de 1925

Vinha do Douro

Foto: josé alfredo almeida

Lugar inesquecível, que o poeta Miguel Torga adorava visitar no nosso Douro, a aldeia de Galafura,aqui um pouco antes do começo das  últimas vindimas, numa quente manhã de Setembro, com o sol  ainda a  doirar e adoçar  os cachos de uvas, num céu imensamente azul, que o mundo vai ver num cálice de Vinho do Porto.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Património da Humanidade

Foto: josé alfredo almeida

"No entanto e apesar disso, dois mil e um ficaria ficaria  para o futuro como um dos anos maiores da história da Região. Passado o tempo e diluída a memória de tanta destruição, anunciava-se uma farta novidade e, pela forma como Verão estava a decorrer, com uvas sãs, bem formadas e maturidade suficiente, os vinhos prometiam. Feita a vindima concluiu-se ter sido esta a terceira´colheita mais substancial e a sétima com maior autorização de benefício de sempre! Aliás, dois mil e um seria ao longo de muito tempo recordado como o último dos anos de um dos ciclos  que, iniciado em meados da década  anterior, se apresentou como dos mais interessantes em termos produtivos e financeiros para os lavradores do Alto Douro.
(...)
S+o que não foi pela abundância que o ano se afirmou como um dos mais interessantes de toda a história regional, nem mesmo pelo facto de ter sido aquele em que, desde sempre, mais vinho do Porto se vendeu - quase cento e setenta e cinco mil pipas -, mas sim pela classificação da Região junto da UNESCO como paisagem cultural de toda a humanidade.
(....)
É que o feito não era de somenos: o mundo, pela voz de um dos mais prestigiados fóruns internacionais, assumia e declarava que a paisagem vitícola do Alto Douro era pertença de toda a Humanidade e, por essa solene proclamação, fazia finalmente justiça a todos aqueles - sofredores!- que, com o sangue, suor e lágrimas do seu corpo, a teimosa sabedoria da sua alma, haviam edificado e construído um reino de monumental beleza e grandiosa singularidade. Lembrou-se então de Miguel Torga que, como ninguém, o havia definido: Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o país de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, á única evidência com que podemos assombrar o mundo." 


Artur Vaz in " Vintage para uma vida"

A marca Régua

Foto: josé alfredo almeida

Breve instante

Foto: josé alfredo meida

Ainda mal acordado
a janela do quarto abri.
Mas tão em neblinas
e vapores
se escondiam as colinas
que logo me entristeci.

Sem o consolo esperado
nos esplendores
da manhã,
longo tempo, sem agrado,
me arrastei,
numa pasmaceira vã,
onde nada de belo
nem simples palavra achei
para algum verso singelo…

Nada
de nada.
Até ao instante sagrado
em que, rasgados os medos
que o haviam sequestrado,
um sol impante de fulgores
pelos montes e vinhedos
revelou formas e cores.

E enquanto assim
a natureza explodia
numa paleta sem fim...
também aquela dor
se desvanecia,
por encanto,
no luminoso sabor
de um poema antes perdido,
mas agora acontecido.
Tão bem e tanto,
que, finalmente, em mim sorri:
- Ei-lo, é este que tenho aqui!...
Artur Vaz

Tardes de Outono

Foto: josé alfredo almeida


É de tarde, na melancolia turva
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos
escorrer sob o azul dos céus quentes,
que essa imagem desce de agosto, ou
setembro, e se enrola sem desgosto
no chão obscuro desse amor que lembro.

Nuno Júdice

Alminhas

Foto: josé alfredo almeida