terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Recordações de Godim


Foto: josé alfredo almeida

Conheço Godim desde que me conheço. Mas, no tempo em que me criei, não se dizia Godim. Dizia-se Jugueiros. 
Ramalho Ortigão, referindo-se com a maior veemência à Ribeira do Rodo, chama-lhe Vale de Jugueiros - risonho e pingue. 
Acontece que as terras mudem de nome ou prefiram, de dois ou três, o que melhor lhes cante no ouvido. Lembram meninas do velho Romantismo, que inventavam, para seu uso, a graça que mais lhe agradasse. Houve graciosas Pulquérias que se crismaram, ficando Elviras durante meses e Genovevas nos meses seguintes. 
Seja de Godim o nome da freguesia, e Jugueiros, ao pé da igreja, um dos lugares da mesma freguesia. 
Faz-se em Jugueiros, vá lá o nome antigo, uma grande festa no dia da Ascen­são, festa móvel que sempre coincide com uma quinta-feira. Quinta-feira da Ascensão… 
À parte o biscoito da Teixeira, muito queijo se vende nessa festa. Vende-se o queijo fino e o chamado queijo de batata. 
Lembro-me de ver, em urna das festas da Ascensão, a uma e outra banda do caminho, da parte da manhã, entre a Quinta de Santa Maria e o recinto da igreja, duas filas de mendigos horrorosos. Vinham até ali da Idade Média, com repulsivos andrajos, aleijões de toda a qualidade e muita cegueira de olhos estoirados. 
Eu tinha-lhes medo. Mas, chegando à igreja, logo esse medo se me desvanecia. Era raro, naquele tempo, que a festa da Ascensão se fizesse sem tumulto ou, como se dizia, barulho. Era o recontro de valentões, que ali convergiam, desafiados, com suas facas, rachas e, se bem me lembro, armas de fogo. 
No auge da romaria, rebentava o conflito. Nesse momento, romeiros e romeiras da sangue acomodado começavam a gritar e a fugir.
No ano em que ali me levaram as Senhoras Monteiras, minhas saudosas mes­tras de primeiras letras, a fuga foi tão rápida, que chegámos num ai ao começo do Sal­gueiral. Já ali haveria uma farmácia. 
Não tenho saudades de romarias tão perigosas. Mas, muitas vezes me lembro do tempo em que visitava, com minha mãe, o alto Senhor da Misericórdia. 
Minha mãe tinha grande devoção com este crucifixo. De tempos a tempos, lembrava-se de o visitar, levando-me como pajem - teria eu nove anos. 
Era para mim tocante a devoção de minha mãe. Penso que lhe devia o refrigério de padecimentos morais.
Não herdei a fé que amparou minha mãe. No entanto, posso dizer que herdei da sua santidade o sentimento religioso. Nos primeiros tempos da minha profissão, ia a pé, de vez em quando, até o adro da igreja de Godim e ali me sentava, à sombra de um plátano, recordando as visitas de minha mãe ao alto Senhor da Misericórdia. De vez em quando, dizia eu à minha gente, mulher e filhos, que devia ali uma promessa. 
Herdei de meu pai a dedicação ao escritor Vieira da Costa, que penava no Salgueiral a infelicidade do isolamento, da pobreza, da surdez absoluta e da cegueira quase completa. 
Muitas vezes o visitei, conversando com ele por meio de sinais - palavras que eu rabiscava, com o dedo, no seu lenço de doente. 
Não quero aqui repetir o que tenho escrito sobre Vieira da Costa, hábil roman­cista cedo prejudicado por invalidez. Devo dizer no entanto, uma vez mais, que nem a Régua nem Godim deram ainda, à sua memória, uma luzinha de consideração. 
Bem a merecia o escritor malogrado. Deveria ostentar o seu nome a Escola Secundária do Peso da Régua ou a Escola Agrícola do Rodo. Leia-se, para coonestar este preito, quanto escrevi sobre Vieira da Costa.
Foi na Ribeira do Rodo que um dia ouvi, ao amanhecer, uma inesquecível música de passarinhos. Estes defuntos hei-de lembrá-los enquanto me não morrer, no ouvido, a sua recordação. No mundo actual, não os posso ouvir, porque morreram. Matou-os a estupidez humana. 
A Ribeira do Rodo! Antes de desonrada por construções abusivas, fora de lugar próprio, foi uma das maiores belezas do país. Gozei-a, em rapaz, de uma das varandas da rua de Medreiros. Foi sonho que me não pode esquecer. 
A chamada recta do Salgueiral, no tempo em que foi avenida, plantada de viço­sos olmos, foi também um dos encantos da terra portuguesa. Ouvi-o dizer a um senhor de Lisboa. 
Não quero pôr ponto neste escrito, das minhas recordações de Godim, sem amaldiçoar, uma vez mais, os inimigos das árvores. 

João de Araújo Correia

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