sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Diário

Foto: josé alfredo almeida


Se Deus quiser hei-de morrer
Com tudo feito e por fazer. 

Raul Carvalho

SMS


Foto: josé alfredo almeida


Quando M. me enviou sms
a perguntar plo programa de fim-de-semana
senti a angústia da página em branco de sexta-feira

Ana Paula Inácio

O "Peso" da Régua no contexto nacional dos Bombeiros




Solicitou-me o dr. José Alfredo Almeida, presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua (AHBVPR), que, na minha qualidade de jornalista e investigador da temática dos bombeiros portugueses, contribuísse com alguns apontamentos, para o jornal O Arrais, acerca da instituição.

Confesso não se tratar de tarefa fácil, por duas ordens de razão: o longo período temporal a que se reporta a existência da Associação e a multiplicidade de factos e figuras que engrandecem os anais da sua história.

Porém, escrevendo eu estas linhas a partir de Lisboa, permitam-me que me ocupe de abordar os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua (BVPR) no contexto nacional dos vulgarmente designados “soldados da paz”.

Fundada a 28 de Novembro de 1880, 12 anos após a constituição da primeira associação de bombeiros voluntários em Portugal (Associação dos Bombeiros Voluntários de Lisboa, por iniciativa do lendário maestro Guilherme Cossoul), a AHBVPR corresponde à trigésima mais antiga estrutura nacional do serviço de incêndios.

A sua primitiva denominação, Real Associação Humanitária, objecto de distinção concedida pelo rei D. Luiz I, em 13 de Julho de 1882, o mesmo monarca que atribuiu a Guilherme Cossoul o título de capitão-chefe dos bombeiros da freguesia dos Mártires, é um dos factos relevantes da história e que atesta a importância, reconhecida ao mais alto nível, dos BVPR. Mas também, já no regime republicano, a concessão, pela Chancelaria das Ordens Honoríficas Portuguesas, da Ordem de Benemerência (1930), da Ordem Militar de Cristo (1931) e da Ordem do Infante D. Henrique (1984), são igualmente três distinções de elevado significado. 

Na verdade, ao identificarmo-nos com a marcha dos tempos distantes e a brilhante folha de serviço dos BVPR, reflexo da dedicação e competência de várias gerações de bombeiros e dirigentes, ressalta uma saudável curiosidade: o socorro prestado em pontos afastados da área específica de intervenção do corpo de bombeiros, de que é exemplo, entre outras, a cidade de Lamego, já no distrito de Viseu. Este é outro aspecto que, a nosso ver, atesta, por um lado, o espírito de missão e a solidariedade funcional dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua e, por outro, quanto o país, à época, no final do séc. XIX e princípio do séc. XX, se encontrava desprovido de recursos destinados à defesa de pessoas e bens. 

É, portanto, a AHBVPR, desde 1880, considerada como sendo uma indispensável força de auxílio, por mérito da sua capacidade de resposta, traduzida em meios humanos e materiais, capazes de fazer frente à adversidade de quantos lhe batem à porta a solicitar a sua abnegada ajuda e a prestação do socorro.

“Saber para Servir”, qualidade inata

Tendo sempre, nos diferentes períodos da história, timoneiros culturalmente mais aptos a perspectivar o futuro e a promover a evolução dos meios operacionais, parece-nos que tal particularidade concorreu positivamente para a afirmação do corpo de bombeiros, assim como de outras vertentes complementares na esfera do associativismo cujas incidências lançaram com sucesso a instituição no tecido sociocultural da cidade do Peso da Régua.

Entre os vários registos fotográficos que me foram disponibilizados, seleccionei os magníficos testemunhos que se publicam, reportados aos anos 50, porquanto os três momentos de instrução ilustram a vontade de “Saber para Servir”, expressão mais ou menos recente adoptada como lema da Escola Nacional de Bombeiros.

Contrariamente ao que alguns locais possam supor, e a avaliar por aquelas mesmas fotos, os BVPR apresentavam-se muito actualizados para a época, não ficando atrás de qualquer um dos corpos de bombeiros, ditos mais evoluídos, de Lisboa e arredores, e que, então, começavam a viver o fenómeno da expansão urbana, não dispondo, na sua maioria, de meios compatíveis com a nova e crescente realidade.

O próprio serviço de saúde, que somente no limiar dos anos 50 começou a ter maior incremento, a nível nacional, na actividade dos corpos de bombeiros, já era motivo de preocupação do ponto de vista formativo. Veja-se a imagem em que os dois bombeiros colocam o sinistrado no interior da ambulância.

Foi inclusive naquele tempo que nos parece terem os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua assumido uma projecção diferente no todo nacional dos bombeiros, nomeadamente a partir do momento em que assume a liderança do corpo de bombeiros o prestigiado e saudoso reguense Carlos Cardoso, porventura o mais jovem comandante de bombeiros do país, através do qual, também, se passaram a estabelecer mais frequentes e melhores relações com a Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP).

Recorde-se, a esse respeito, a data de 14 de Dezembro de 1958, com a presença de António de Moura e Silva, presidente da LBP, nas comemorações do 78.º aniversário da fundação da Associação, assinalando a inauguração de uma ambulância e do pavimento do edifício do quartel-sede. A título de curiosidade, citamos parte da notícia então publicada no boletim da confederação:

“De tarde, algumas dezenas de delegações de outros corpos de Voluntários, que foram associar-se ao júbilo da sua congénere, concentraram-se com esta, na Avenida da Estação, onde o Presidente do Conselho Técnico e Administrativo da Liga dos Bombeiros Portugueses e nosso director, Sr. António de Moura e Silva, lhes passou revista.”. A 14 de Dezembro de 1958 era ainda comandante Lourenço de Almeida P. Medeiros.

Mas voltando ao comandante Carlos Cardoso, o seu nome veio a ser indicado para os elencos directivos da LBP, pelo menos, ao que julgamos saber, a partir do XVIII Congresso, reunido em Lisboa no ano de 1968, sendo eleito na qualidade de membro suplente do Conselho Administrativo e Técnico. O mesmo aconteceu, dois anos mais tarde, aquando do célebre Congresso de Aveiro – 70, reunião magna inspiradora da criação do Serviço Nacional de Bombeiros (SNB), constituindo a reeleição do comandante um renovado sinal da consideração tida pelos BVPR e da sua representatividade. 

Peso da Régua – 80, marco histórico

Porém, foi em 1980 que Peso da Régua passou a ficar duplamente inscrita na história dos bombeiros portugueses, enquanto cidade anfitriã do XXIV Congresso, também comemorativo do 50.º aniversário da fundação da Liga dos Bombeiros Portugueses, cuja organização mereceu os mais rasgados elogios.

A nível geral da estrutura dos bombeiros, vivia-se então um clima de fundada esperança na modernização do sector. Era aguardada, a todo o instante, a publicação da Lei Orgânica do SNB, organismo entretanto criado.

“Porque desejamos fazer mais e melhor e porque apenas pedimos condições para fazer ‘melhor’ pois que do ‘mais’ nos encarregamos nós, julgamos que os gonzos deste Congresso, de portas abertas ao futuro, devem girar sobretudo em torno da preocupação de consolidar e pôr em funcionamento efectivo a organização já conseguida e, burilando o que ainda falta burilar, abrir pistas para que a riqueza humana de que dispomos encontre condições para realizar um futuro de corresponsabilidade e solidariedade social aceite e participadamente construído por todos.”

Assim incentivou o Conselho Administrativo e Técnico da LBP os congressistas, em Peso da Régua, quiçá inspirado na tradição reguense e dos seus bombeiros, habituados a encarar o futuro como a renovação natural de algo que tem o seu tempo útil, um pouco à semelhança do que acontece com o ciclo sucessivo da produção vinícola: cultiva-se, colhe-se e transforma-se. 

Recorde-se, pois, os BVPR e o seu inestimável contributo histórico para uma nova era dos bombeiros de Portugal, tomando-os como exemplo de quem desbravou e aponta caminhos num permanente incentivo no que toca a fazer melhor… e mais! 

Luís Miguel Baptista
Jornalista, ex-director adjunto do jornal “Bombeiros de Portugal”, da Liga dos Bombeiros Portugueses.
Responsável pelo espaço “Fogo & História”, http://fogo-historia.blogspot.com

Um romance de Vieira da Costa




A Familia  Maldonado - Pathologia Social, romance totalmente esquecido do pouco recordado escritor reguense Vieira da Costa (1863-1935), que nasceu, viveu e morreu no Salgueiral, tem o começo da sua história nas ruas principais da cidade de Lamego:

"Foi na tarde d` um domingo d`Agosto. em 1886, que a familia Maldonado chegou a Lamego, para ahi fixar residencia.
Era aquela a hora habitual do passeio, e a população endomingueirada, formigava, convergindo para o Campo das Freiras a ouvir a banda do 9, ou para a Alamêda a gosar a frescura dos arvoredos e das águas correntes.Pela rua dos Mercadores, um pouco angulosa, como pela Almacave, accidentada e larga, e ainda pela Olaria, esttreita e ingreme, ia um fervilhar de gente. Bandos elegantes das senhoras em toilettes alvadias, de estio, criadas de servir ou operarias de folga com lenços de  côres variedadas, berrantes, homens do campo e da cidade em trajos  de festa, cavalheiros fumando e discuntido, comegos roliços, vermelhaços, dùma adiposidade suina, rolando penosamente a sua rotundidade - tudo isto pejava os passeios, invadia ruas; os alunos do collegio, em filas, commandados por padres, passavam unidos em batalhão; e os officiaes do 9, fazendo tilintar nas lages dos passeios ou nas  pedras da rua as suas espadas, punham uma nota marcial na pacatez das ruas pacificas!

E, mais à frente, faz uma descrição do espaço geográfico que habitamos e nos é familiar, onde  salienta um   " montão incaracterístico de casas brancas ", como  já era, ao seu olhar,  a Régua do seu tempo:

"Depois descendo para o sul, Poiares, dispersando-se em povoados e casaes, Galafura, estendendo-se para leste e oeste em duas linhas paralellas, Canellas, alcandorada sobre a crista d`um monte aspero que os vinhedos cobrem; e, mais perto, sobre a orla do Douro engrossado da invernia, torrentuoso e barrento, a Regoa, montão incaracteristico de casas brancas, e ao lado, dominando o vale uberrimo de Jugueiros, Godim com a multiplicidade dos seus povos e a dispersão dos seus casaes, que o Salgueiral, estenso e branco, sobrepuja e domina; e mais perto, aquem do rio já, em terras beiroas, Portello de Cambres com o seu casario, que a cortina de um monte enconbre em parte."    


Salgueiral da Regoa
Abril-Agosto-1906

Vieira da Costa

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

VILLA REGULA - cidade da vinha e do vinho


Foto: josé  alfredo almeida

"Para os arqueólogos, a Régua é povoação antiquíssima. Data, pelo menos da denominação romana que lhe deu o nome - Villa Regula. Mas, a Régua que hoje se estende à margem direita do Douro, no sopé da colina a que chamam Peso, é povoado tão novo, que se lhe pode assinalar, como a qualquer de nós, o dia do nascimento. Veio ao mundo a 31 de Agosto de 1756 - data da fundação da Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro. Este acto do Marquês de Pombal e, em 1790, a construção dos armazéns da Companhia deram origem à Régua actual. Se outra ou outra existira, em remotas eras, jaz soterrada. Se outra ou outras, por assim dizer, no mesmo lugar demoraram - tinham fenecido. A última, de que há  alguma notícia, despovoara-se no começo do século XVIII - provavelmente devido a uma das tremendas crises periódicas da lavoura duriense.  
O Marquês de Pombal, criando a Companhia, remédio económico de ocasião, criou a Régua do nosso tempo. Atraiu o lavrador, liberto do mau comércio, a uma casa benigna como compradora ou orientadora.Junto dessa casa, levantaram-se as primeiras tendas, tabernas, alquilarias, mercearias, depósitos de sal e de sardinha.
O rio era o veículo do vinho para a barra do Porto e, do Porto para cima, o recoveiro de mercadoria úteis ao vinicultor. A Régua, que fora um deserto, fez-se ancoradouro de toscas naus de levar e trazer material e passageiros.
Estabeleceu-se, à beira-rio, um empório comercial. A Régua, porta aberta para duas províncias, Trás-os-Montes e Beira Alta, forneceu-lhes o necessário e o supérfluo. O Vareiro, que então apareceu, tomou a seu cargo o abastecimento de dois produtos do mar: o sal e sardinha.
O Marquês de Pombal, decretando a Companhia, reconstruiu a Régua. Mas, quem a povoou foi o Vareiro. O Vareiro e Galego...O Vareiro dedicou-se ao comércio. Do monte de sal, pinchou para o negócio de toda a casta de víveres. O Galego, que fora cavador, fez-se taberneiro e, mais tarde, vinicultor de vinhos finos. Um e outro foram progenitores da Régua de hoje. Mas, do Galego, já me ocupei, num livrinho que anda esquecido e se chama Sem Método. Do Vareiro, ocupo-me hoje pela primeira vez, cumprindo uma ideia que me vem de longe.
Tento esboçar, nesta palestra, a colonização da terra onde trabalho, nascida ou renascida por decreto do Marquês de Pombal, isto é, a Régua ribeirinha, que é a parte baixa da vila. À parte alta chama-se Peso. Mas, o Peso, embora ligado à Régua pela íngreme Rua de Medreiros, é povoação distinta. Não consta que tenha sofrido as vicissitudes da Régua, quanto a povoamento e despovoamento. Manteve-se, rural e fidalgo, como sempre foi. É uma espécie de aldeia grande, no topo da colina. A seus pés, fica a Régua, que sempre olhou com desdém. Lavrador, aristocrata, aborígene, considera a Régua uma intrusa alapardada atrás de um balcão.
Mas, ao passo que a Régua, pesando e medindo, enriqueceu, o Peso nunca passou da triste mediania. Peso da Régua, nome oficial de toda a vila, é burgo de dois burgo, duas étnicas, dois caracteres."

João de Araújo Correia in "Palavras Fora da Boca"   

(Re)Conhecer a Régua-18




Paz das Montanhas


Foto: josé alfredo almeida




Paz das montanhas, meu alívio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo, sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.


Miguel Torga

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Um corpo que se estende






Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.

Octavio Paz

Rio da eternidade


Foto: josé alfredo almeida






por si só, o tempo não é nada. 
a idade de nada é nada. 
a eternidade não existe. 
no entanto, a eternidade existe. 

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. 
os instantes do teu sorriso eram eternos. 
os instantes do teu corpo de luz eram eternos. 

foste eterna até ao fim



José Luís Peixoto


Bombeiros...Progressistas




Quanto mais conheço do passado da Associação dos Bombeiros da Régua, mais aprendo sobre a História da Régua. Entre a história de uma secular instituição e a de uma cidade cruzaram-se pessoas e registaram-se acontecimentos marcantes socialmente que, em cada época, teceram a mentalidade da sociedade reguense. Podia dizer-se que pela história da Associação de Bombeiros da Régua se faz parte da História da nossa terra, seja ela política, associativa, económica ou social. 

Vejamos elucidativo exemplo que prova como um simples relatório de contas, apresentado pela gerência dos bombeiros aos associados, pode revelar como e em que medida os soldados da paz eram apoiados pela sua autarquia. Recuemos, então, até ao ano de 1903, ao tempo da monarquia, para se entender o que se passou de invulgar para as contas dos bombeiros apresentarem um resultado deficitário, o que muito preocupou os directores e associados mais assíduos, reunidos em assembleia-geral. Quem sabe de assuntos de contabilidade percebe que da comparação entre os números das receitas e os das despesas se retiram conclusões do rigor de uma boa ou errada gestão. Se o resultado final dá saldo positivo, tudo está bem e ninguém vem reclamar. Se o resultado é negativo, recomenda que se apurem as razões por que se fizeram mais gastos ou então, se foi caso disso, porque falharam os proventos.

No caso que apontamos, o problema esteve do lado das receitas, que diminuíram, ao contrário do que seria esperado. Diz esse relatório – frisa bem - que “este defficit foi determinado exclusivamente, pelo facto de a câmara municipal se negar a dar o subsidio com que, desde muito, vinham auxiliando a associação”. 

Quem governava a câmara municipal, há mais de treze anos, era o partido regenerador, representado então pelo Dr. Júlio Vasques - ilustre Paladino do Douro -, com o partido progressista, do advogado Dr. Manuel da Costa Pinto, muito activo na oposição. 

Aquela decisão política não deixou de ser duramente contestada pelos directores da instituição, os quais não entendiam que estivesse orçamentada uma verba de 50.000 réis para o serviço de incêndio e, como aquele relatório menciona, “essa quantia não fosse entregue à Associação, visto não haver aqui outro serviço de incêndios, além do dos voluntários”. Os directores dos bombeiros recorreram dessa decisão camarária, mas a vereação ignorou a pretensão dos bombeiros, sem sequer dar uma razão para suprimir o apoio à sua actividade.

O que terá levado o presidente da câmara, Dr. Júlio Vasques, um experiente político, a retirar o subsídio aos bombeiros voluntários, que prestavam um verdadeiro serviço público à sociedade reguense, não se entendeu - nem hoje se entende - muito bem. Parece que as leis de atribuições municipais, à data, não obrigariam a câmara municipal a financiar o serviço de extinção de incêndios, entregue à responsabilidade de ser assegurado pelos bombeiros voluntários. Se a autarquia reguense, como muitas outras no país, tinha optado por não organizar um serviço municipal de socorro para evitar gastos elevados ao erário público, tinha a obrigação de garantir um apoio mínimo para manter em regular funcionamento a missão humanitária atribuída aos bombeiros voluntários.

Na imprensa local, os contornos deste conflito da câmara municipal com a Associação de Bombeiros assumiam uma rivalidade política partidária. Os regeneradores acusavam os Bombeiros da Régua de estarem na sua maioria filiados no partido progressista. Sendo verdade, não seria motivo para serem prejudicados, mesmo que os líderes principais fossem politicamente progressistas, como Joaquim Souza Pinto, Francisco Lopes da Silva, João Alves Barreto e o benquisto capelão, Padre Manuel Lacerda. O bissemanário O Douro, em diversos números, serviu de porta-voz destes directores que fizeram críticas contundentes ao presidente da câmara:


“ O Sr. Julio Vasques perdeu um excellente ocasião de estar calado – em relação aos bombeiros, já se sabe. Devia ser coherente. Já que os esbulhou do subsidio que tão necessário lhe era para continuarem a exercer, sem dificuldades, a missao honrorrisima que se imposeram, para compra de material indispensável ao seu serviço e para custeio das despesas mais ou menos avultadas que fazem quasi sempre na vila e nas povoações próximas…


(…) O garoto podia dar à sua pedrada aplicação mais justa. Jogasse-a contra os vereadores, que faria nisso uma boa acção, castigando-os da brutalidade que cometteram em eliminar do orçamento camarário a verba com que o municipio vinha subsidiando há muito aquella prestante corporaçao. Politica? O garoto não sabe o que diz. Os bombeiros não fazem politica partidaria. São contra a câmara, porque esta os melindrou sem motivo plausível, deixando de subsidiar a associação. Que importa que a maior parte d`elles estejam filiados no partido progressista, se, quando se tracta de serviço, nunca fazem a distinção entre progressistas e regeneradores, e a todos acodem com a mesma solicitude e boa vontade?”


“Agora que os regeneradores regoenses estão prestes a serem escorraçados do seu último reducto – a câmara municipal - vamos relembrar alguns agravos que elles nos fizeram durante o seu longo e escandaloso mandato.”


(…) Dias depois, a mesma câmara, allegando que na Associação de bombeiros voluntários prevalecem os progressistas, resolveu supprimir do seu orçamento o subsidio com que o município auxiliava, desde muito, aquela benemérita corporação, ficando esta em risco de acabar por falta de recursos.”


Aos nossos olhos, aquelas críticas, mais do que tudo, revelam a discordância duma decisão política – hoje designada de politicamente incorrecta. Os bombeiros não eram opositores políticos dos regeneradores e, como salientaram, estavam contra a câmara municipal por terem sido melindrados sem motivo plausível. Quer dizer, os bombeiros, como é de ver, estavam contra o Dr. Júlio Vasques, que terá recorrido a uma estratégia política de fazer pressão, no sentido de conquistar correligionários e, dessa forma, aumentar o número de apoiantes do partido regenerador. Não se compreende que um autarca, no seu perfeito juízo, retire sem explicação o financiamento devido à única organização de socorro que tem no seu concelho e, assim, ponha em perigo vidas e bens.

Sabe-se que o Dr. Júlio Vasques nunca foi um cidadão consensual entre os seus contemporâneos, mesmo no grupo dos Paladinos do Douro, onde algumas das suas intervenções não mereceram um aplauso unânime dos seus pares. E, no exercício das funções de presidente de câmara da Régua, a sua gestão foi sempre muito contestada pelos opositores e pela Associação de Bombeiros. 

Mas, se esta sua decisão política, sempre polémica e discutida, não serve para lhe diminuir o prestígio e notoriedade que alcançou como um paladino activamente empenhado na defesa do Douro e dos interesses da viticultura, não deixou de ser incompreensível para aqueles bombeiros que, no espírito da sua missão humanitária, só queriam cumprir com dignidade um lema universal: Vida por Vida. 


José Alfredo Almeida

Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua

Andar sobre as águas


Foto: josé alfredo almeida

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Últimas amarras





"O nosso amor não mora nestes rio
disseste, mas das últimas amarras
tinham partido todos os navios."


Orlando de Carvalho 

Régua vista do céu



Sei de um rio

Foto: josé alfredo almeida


Sei de um rio, sei de um rio
Em que as únicas estrelas nele sempre debruçadas
São as luzes da cidade 
Sei de um rio, sei de um rio
Onde a própria mentira tem o sabor da verdade
Sei de um rio…
Meu amor dá-me os teus lábios, dá-me os lábios desse rio
Que nasceu na minha sede, mas o sonho continua
E a minha boca até quando ao separar-se da tua
Vai repetindo e lembrando
Sei de um rio, sei de um rio
Meu amor dá-me os teus lábios, dá-me os lábios desse rio
Que nasceu na minha sede, mas o sonho continua
E a minha boca até quando ao separar-se da tua
Vai repetindo e lembrando
Sei de um rio, sei de um rio
Sei de um rio, até quando

Pedro Homem de Melo

Muros de Xisto


Foto: josé alfredo almeida

Muros de xisto,
tal como outrora cobertos de silvas,
ostentando amoras.
Caminhos.
Este já foi ribeiro, o ribeiro dos linhos.
Já não existe ribeiro, tão pouco o linho.
O pó esvoaça lento
por sobre o chão incerto e poeirento.
Caminho com dificuldade,
o sol poente ofusca-me a visão.
Percorro outro caminho, o da memória
que, como o xisto, se esboroa com o tempo.
Firme, a mão do meu pai segura a minha mão.


Regina Gouveia

Velhas Árvores

Foto: josé alfredo almeida


Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas, 
Vencedoras da idade e das procelas... 

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas 
E os amores das aves tagarelas. 

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem: 

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem! 

Olavo Bilac

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Passar com o vento


Foto: josé alfredo almeida
    Ontem, às 14.30 horas...

    "Outras vezes oiço passar o vento,
    E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido."

    Fernando Pessoa

Neste dia cinzento


Foto: josé alfredo almeida



Neste dia cinzento
procuro um verso
e não encontro
não tem importância


Adília Lopes

Almas


Foto: josé alfredo almeida

(Re)Conhecer a Régua-18




Milagres


Foto: josé Alfredo Almeida



hoje sei
que estivemos tão perto
de ter quase tudo

que era possível ainda regressar ao largo
deixar a mão poisada na superfície plana
da água do tanque

e esperar
os milagres.



José Carlos Barros

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Viagem

Foto: josé alfredo almeida

A caminhada mais longa
É a despedida
Muito breve que seja

A caminhada mais longa
É a despedida
Partiste

Ficou tudo 
Por dizer

Quase tudo
Partiste

Como é possível 
Interromper
A eternidade?

 Alberto Lacerda

Labor de Historiador





A História interessa a um número crescente de cidadãos. Este interesse pela História radica os seus fundamentos na procura de respostas a perguntas emergentes: de onde viemos, quem somos, para onde vamos?
No seu trabalho, o fazedor de história utiliza a informação que recolhe, interpreta-a metodicamente e dá-lhe vida.
O herói desta história, laboriosamente construída pelo Dr. José Alfredo Almeida, é colectivo, revelado no palco dos acontecimentos, ou seja, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua. As personagens evocadas são sobretudo Bombeiros, com e sem farda, mas também ilustres reguenses.
Nas páginas deste livro estão reflectidos os valores dos Bombeiros Portugueses, através da evocação de algumas das figuras que marcaram decididamente a vida e a actividade dos bombeiros do Peso da Régua.
O autor, com uma prosa simples e despretensiosa, fala de alguns dos seus conterrâneos mais carismáticos, com uma indisfarçável paixão. Relata episódios, recorda acontecimentos e descreve memórias.
Faltará a este livro o rigor metodológico e a organização temporal dos textos, para que estes pudessem adquirir uma perspectiva contextualizada, no espaço e no tempo.
Porém, isto não retira mérito à missão a que o autor se aventurou. Nestas páginas adivinham-se centenas de horas de pesquisa e muito empenho pessoal, tendo por objectivo trazer ao conhecimento colectivo fragmentos da história de uma instituição intimamente ligada à comunidade que a criou.
Os bombeiros portugueses têm razões para se orgulhar do trabalho desenvolvido pelo Dr. José Alfredo Almeida, como dirigente, mas também como laborioso redactor da  História de uma das mais prestigiadas Associações Humanitárias de Bombeiros.
A qualquer historiador coloca-se sempre um problema - narrar como e porquê? Contar  empolgando, contar ensinando, contar interpretando ou contar, simplesmente, pelo prazer de contar. O autor deste livro escolheu precisamente esta última via. Relatar com prazer, com orgulho e com devoção, partilhando a emoção da descoberta e o fascínio da exaltação da memória.
Este é um texto que nos oxigena e que nos faz acreditar que os anos que dedicamos à causa dos Bombeiros de Portugal valem por si e pela riqueza humana que eles nos proporcionam.
Quando mais não fosse por isto, este livro já teria valido a pena ser dado à estampa.
Mas vale muito mais. É isso que desafio os leitores e leitoras a comprovarem por si próprios.
Resta um apelo ao autor: não fique por aqui. Siga com a missão de dar vida à memória dos Bombeiros da sua terra e, com ela, continue a contribuir para a dignificação dos Bombeiros Portugueses.



Duarte Caldeira
Presidente do Conselho Executivo da Liga dos Bombeiros Portugueses 


Navegar em águas calmas


Foto: josé alfredo almeida
A luz que de ti me vem
Devolvo-a
Amorosamente
A tudo quanto existe

Alberto Lacerda

Como esta casa



Foto: josé alfredo almeida


Como esta casa quero
abeirar-me da morte,

e assim fechar o corpo
no tempo de uma ave
cansada de sombras

fria, à espera
da fúria de deus.

Envelhecer escura
como esta casa,
cheia de fantasmas dentro
roseiras bravas
trepando ventanias

e um poço no sítio
difícil do coração.

Renata Correia Botelho

Céu Azul




A criança olha 
Para o céu azul. 
Levanta a mãozinha. 
Quer tocar o céu.


Não sente a criança
Que o céu é ilusão: 
Crê que o não alcança, 
Quando o tem na mão. 


Manuel Bandeia

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Cidade Submersa


Foto: josé alfredo almeida


Régua, 9 de Fevereiro...

Se não fosse...




Foto: josé alfredo almeida



Ah, se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha janela onde me vou
Debruçar, para ouvir a voz das coisas,
Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte, que chorava,
E como nós cantava e que secou...
E este sol, que eu comungo, de joelhos,
Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse este luar, que chama
Os espectros à vida, e se infiltrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.

Ah, se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sombra povoou,
E de vozes sombrias meus ouvidos,
Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
Eu não era o que sou.

Teixeira de Pascoaes

Com o Douro em fundo


Foto: josé alfredo almeida


Porque
mãos nas mãos
com o Douro em fundo
tu e eu sabemos
que tudo está dito

Luís Graça

De noite

Foto: josé alfredo almeida



... de noite, os seres mudam o seu valor
cada ser se revela apenas pela luz que dele emana


Mia Couto

(Re)Conhecer a Régua-17




Congresso da Régua




Guardo, na memória mais viva, um registo impressivo da minha passagem pelo Congresso da LBP, o 41º, que teve lugar na cidade da Régua, de 28 a 30 de Outubro de 2011.
Foi um Congresso com uma excelente organização e um ainda melhor acolhimento por parte dos Bombeiros Voluntários  da Régua, que, com simplicidade e mestria, souberam receber e reconhecer os Congressistas.
Três dias, antecedidos de tantos outros, todos indistintamente entusiasmantes e não menos marcantes.
Durante 6 meses, preparei afincadamente o Congresso e parti para ele com motivação, ambição e realismo q.b.
O realismo de antecipar uma disputa difícil, também pelo rol de personalidades que desfilaram, dias a fio, na passadeira dos apoios e adesões, expondo razões, algumas, escondendo motivações, outras tantas, marcando posições, todas elas.
A ambição de representar os Bombeiros de Portugal, liderando a Confederação, com um Programa conhecido, abrangente e explícito.
A motivação de um saber e conhecer, com capacidades para, com entrega e a tempo inteiro, responder ao desafio a que me propunha.
Recorri às novas tecnologias e delas fiz uso insistente e recorrente para divulgar, com propriedade e actualidade, um conjunto vasto de textos, contendo a minha opinião sobre temas prementes, e permanentes, da vida dos nossos Bombeiros.
Deste modo, julguei estar mais próximo e procurei chegar mais longe.
Conscientemente, privilegiei o circuito comunicacional, sabendo que, com isso, me comprometia e também me expunha.
Do Congresso, dos seus 3 dias, reclamo uma quase ausência de projectos e ideias, um enfoque nos protagonistas e em alguns figurantes e um rebuscado e intrigante jogo de bastidores.
Todos excessivos.
Tendo feito uma prévia e profunda reflexão sobre o sector dos Bombeiros e a sua integração activa no Sistema Nacional de Protecção Civil, com apuramentos necessários e urgentes, apresentei ideias e propus-me ao debate do papel e das responsabilidades do Estado, do modelo organizativo para os Bombeiros, do modelo de financiamento para as AHBVs/CBs, das responsabilidades na área da saúde (do transporte de doentes ao pré-hospitalar) e da formação.
Não alimentei ataques pessoais nem me revi em atentados de carácter.
Foram dias intensos, muito intensos e vibrantes.
Um Congresso eleitoral com mais que uma lista concorrente é sempre um espaço emocional e um momento vivo e singular, enquanto expressão de divergências e de visões plurais.
No Congresso, a par de uma “foleira” fulanização, ficou evidente a existência de duas abordagens opostas, de duas visões bem distintas, resultado também de dois percursos bem diferentes que alguns, confortados no desconhecimento, quiseram apoucar.
E essa oposição vale, hoje, como herança, que enriquece o presente e condiciona o futuro.
O futuro faz-se do imprevisto, da incerteza, do risco, mas também do que para ele carrearmos em propósitos, compromissos e cumprimento de palavra dada.
Apesar de não ter ganho o Congresso, como era minha expectativa, não saí zangado, nem ácido e muito menos azedo.
Apenas triste.
Porque não vi traduzido em votos e em confiança o investimento, físico e intelectual, que fiz ao longo dos tempos para que os Bombeiros abraçassem a missão de sempre, com outra ousadia e ambição.
Bati-me para que os Bombeiros ganhassem um lugar central no sistema, reflectindo nesse lugar o seu peso e importância operacionais como garante do funcionamento regular e pronto da Protecção e Socorro.
Com o Congresso da Régua ganharam os Bombeiros.
Houve confronto e pluralidade de ideias e, com dignidade, provou-se que é possível construir a unidade nos fins, impulsionando a diversidade estratégica.
Aos Bombeiros da Régua, o meu muito obrigado por me (nos) terem acolhido tão bem!
Aos Bombeiros de Portugal, o meu agradecimento por me terem proporcionado dos dias mais ricos da minha vida dedicada a esta estranha causa, que, por ser também estranha, mais se entranha!

Rebelo Marinho
Presidente da Federação de Bombeiros do Distrito de Viseu

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O universalismo de João de Araújo Correia


Médico e escritor João de Araújo Correia


João de Araújo Correia é, definitivamente, um vulto saliente do neo-realismo português que faz, quanto a mim, a perfeita justaposição entre o naturalismo concreto e um superior regionalismo que ultrapassa os limites do espaço onde a sua obra se realiza. É visível a ligação ficcionista do meio rural ao urbano através da sua actividade de cronista e palestrante nos ambientes citadinos e também (ou acima de tudo), nos seus contos, onde a aristocracia em decadência de regime e a ascendente burguesia se degladiam, surdamente, na expectativa dos melhores bocados, saltitando entre a terra produtiva e a urbe gastadora em azáfama de fim de ciclo.

É na sua matriz regionalista que, todavia, João de Araújo Correia atinge a pujança determinante do seu carisma. António José Saraiva e Óscar Lopes, na sua “História da Literatura Portuguesa”, distinguem-no: “(…) assimila à mais correntia e elegante prosa a fala oral dos seus aldeãos, e tornou-se capaz como poucos de organizar a narrativa de modo a dispensar a mínima nota judicativa extrínseca à acção, convertendo muitas vezes o próprio narrador rural da primeira pessoa em personagem bem caracterizada e que se mexe à nossa vista.”

A sua obra contém uma marca que sempre me impressionou: um elevado sentido ético, um enorme respeito para consigo e para com os outros; a preocupação de não inventar o verbalismo normalmente associado à incapacidade de (re) criar o enredo; o esforço pelo apuro linguístico e pela verdade da tradição do seu povo. A sua obra é o espelho da simbiose por muitos tentada e não conseguida: a identificação entre o Escritor e o Homem da (con) textura literária e da insígnia cívica. Não há fingimento ou disfarce entre a escrita e o ser que a expressa, aquela dualidade que, muitas vezes, acontece entre a áurea literária e a pequenez humana, entre as tiradas de fraternidade e a frieza e o egoísmo do nome que titula os livros.

Há quem, ao debruçar-se sobre a obra de um Autor (na globalidade da sua estrutura), se preocupe em decifrar ao milésimo os fonemas das palavras, os pormenores da pontuação, a concordância gramatical, a originalidade de coisas novas ou a novidade perante coisas velhas, o ritmo da composição, o estilo que é o cunho do escritor, a intimidade psicológica da sua definição, a distinção entre a forma e o fundo, a beleza estética entre a moldura e o conteúdo que naquela se delimita. João de Araújo Correia não foge a nenhuma exigência, suporta todas as equivalências e dimensiona-se em todas as características críticas.

Aqueles que o apelidam de escritor exclusivamente ruralista pecam por imprudência e precipitam-se na apreciação redutora. O ruralismo não é - bem se sabe- qualidade que calhe a todos. Dir-se-ia, até, raridade que só a pente fino se apanha. Numa sociedade enlatada, plastificada, computorizada e robotizada, escrever-se com e pelo povo é literatura que muitos depreciam por inabitualidade cultural ou presunção elitista. Mas não só hoje. Ontem, um ontem onde muitos românticos se excepcionam, a ficção rural surgiu como uma tipocromia que a muitos pareceu uma revelação pitoresca de uma criação restrita a uma determinada extensão geográfica.

João Araújo Correia rompeu essa esfera local, transportando, para além dos Montes, a saga duriense num eco de genética universalidade. Foi porta-voz e protagonista dos sacrifícios de uma raça que ergueu com sangue, suor e lágrimas a mais bela arquitectura geodésica; ilustrou para o mundo que sabe pensar e amar as grandezas ou as misérias (que também as há em qualquer nobreza) de gentes heróicas ou velhacas, joviais ou taciturnas, francas ou mangadoras, decadentes ou evolutivas, directas ou evasivas, supersticiosas ou desembaraçadas – retrato de qualquer povo em qualquer atlas actual ou passado.

João Araújo Correia escreveu não para ter nome, mas para o dar aos outros, para dar voz a quem não a tinha. Esticou as horas num desinteressado esforço para que as cinzas nos nossos lares nunca se apagassem; para que, em nenhuma parte do mundo, ninguém roubasse a gesta da nossa experiência e as gerações soubessem (saibam) que o sofrimento aqui não é diferente do de qualquer sítio onde não morre o lume da esperança que nos ilumina.

João de Araújo Correia recusou, por feitio e formação, a propaganda das ideologias culturais que alcandoram os apaniguados a símbolos da consciência nacional; afastou-se, por visceral repulsa, de todas as franjas onde se misturam o sofisma da (in) dependência com a mistificação da (im) parcialidade; não foi atracção de luxo em palcos de concentrações de massas, nem deixou que a sua palavra servisse de bandeira para fins diferentes do da Arte: a comunhão entre os homens no respeito pela diversidade.

Nasceu e morreu no chão que o modelou, resistiu à tentação das entronizações, ficou no seu canto sabedor de que, depois da passagem física do ser, é sempre a eternidade da sua memória criativa que resta. Voou longe como uma ave sem gaiola; pousou nas árvores da sua paixão e revoltou-se contra quem as cortou; conheceu os beirais da sua terra porque peregrinou pelos miradouros do sonho; ouviu, nos catres da doença, os gemidos anunciadores da morte e por isso exaltou a vida sem deslealdades.

M. Nogueira Borges

Estou aqui


Foto: josé alfredo almeida

Régua, hoje às 7.30 horas... 

Beleza Rara


Foto: josé alfredo almeida




Belo é o abismo.
Muito mais belo o arco da ponte
no ar.


Cassiano Ricardo 

Instante Eterno



Foto: josé alfredo almeida


                                  "esperar um pouco menos, amar um pouco mais"

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A terceira vez…


Quartel Delfim Ferreira- Bombeiros da Régua


Já cá tinha estado duas vezes, mas não passara de um olhar de relance, que apenas aguçara a minha curiosidade, alimentada pelas múltiplas referências aos Bombeiros da Régua que lera em crónicas de João de Araújo Correia e na monografia de Oliveira Soares.
A primeira vez foi há uns bons quinze anos, atraído pela vontade de conhecer a obra humanitária, movida pelo espírito colectivo de acção cívica, de voluntariado e de solidariedade, para lá da elegância da fachada dos anos trinta, desenhada pelo esquecido arquitecto Oliveira Ferreira, autor de obras notáveis, como os edifícios dos Fenianos e da Brasileira, no Porto, a Câmara de Gaia, o Sanatório de Valadares, o Hotel Astória, em Coimbra, o Monumento à Guerra Peninsular, em Lisboa, e outras. Mas, dessa primeira vez, não passei da entrada. Um telefonema urgente desviou-me, contrafeito, para outras prioridades.
A segunda vez, recordo-me bem, foi há quase uma década, nas comemorações do 25 de Abril de 2003, em que tive o prazer de proferir uma conferência intitulada Douro: Património, Democracia e Desenvolvimento, a convite do Dr. José Alfredo Almeida, então vereador da Câmara Municipal de Peso da Régua. Dessa vez, senti vontade de percorrer o edifício e de saber mais sobre os bombeiros da Régua. Mas a circunstância era de festa cívica, com programa oficial a cumprir. A visita teria de ficar para momento mais oportuno. Passaram quase dez anos. E eu terei passado centenas de vezes por aquele edifício, sempre a correr, com os problemas que me absorviam, nessa altura, todo o tempo de que dispunha. Além disso, a visita que desejava fazer à sede dos Bombeiros da Régua exigia vagar e recolhimento, pouco compatíveis com a vertigem do trabalho no Museu do Douro e as viagens quase diárias ao Porto, para cumprir as minhas obrigações docentes na Universidade do Porto.
Diz o povo que «à terceira é de vez». Foi esse adágio popular que me ocorreu, quando, no Verão passado, consegui, finalmente, fazer a visita desejada às instalações dos Bombeiros Voluntários da Régua, guiado pela amizade do Dr. José Alfredo Almeida, presidente dessa associação benemérita. Tínhamo-nos cruzado, casualmente, à saída do café, com a promessa de voltarmos a encontrar-nos no dia seguinte, com tempo para pormos em dia conversas sempre inacabadas, sobre os problemas do Douro, a Régua, as iniciativas culturais e, claro, a «sua» Associação de Bombeiros, a que tem dedicado uma devoção sem limites. Lá estávamos no dia a seguir. Estendeu-me um livro — É para si. Eram as Memórias dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, que publicara em 2011. Várias vezes me falara desse projecto, que concentrara o seu entusiasmo durante anos a fio, e eu podia antecipar o valor daquelas memórias, repletas de personalidades, acontecimentos, tenacidades e heroísmos. Afinal, o sentido fraterno de humanidade, corporizado numa instituição associativa de voluntariado, em que o lema «vida por vida» congrega a abnegação individual e a força dos laços de comunidade. Ao folhear as Memórias dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, que entremeiam crónicas, muitas delas publicadas no jornal Arrais, e imagens da longa história da associação com mais de 130 anos, percebe-se que se trata de uma história vivida, essencial para a compreensão não apenas da instituição em que se centra, mas também de momentos marcantes na vida da Régua e da região. Lá estão referências às cheias grandes, como a de 1909 ou a de 1962. Ou ao desastre de Caldas de Moledo, de 1904, ao incêndio de Lamego, em Junho de 1911, que destruiu vinte casas da Rua de Almacave, ao incêndio do Asilo Vasques Osório, em 1919, ao incêndio da Câmara da Régua em 1937, à tragédia de Rio Bom, em 1959, e tantos outros acontecimentos em que o lema «vida por vida» mobilizou os bombeiros da Régua. Já conhece a nossa sede? — perguntou-me. Não, ainda não conheço, mas gostava de conhecer — respondi ao Dr. José Alfredo. Se tiver tempo, podemos lá ir agora. E pegou-me pelo braço, já a sair para a Rua dos Camilos: fizemos obras, mas procurámos respeitar o património, temos um pequeno museu e uma biblioteca. Pelo caminho, apreciámos o modesto edifício que serviu de primeiro quartel dos bombeiros da Régua, no Largo dos Aviadores. Em pouco tempo, já estávamos a subir a escadaria da torre do edifício da actual sede, ao cimo da Avenida Antão de Carvalho. E passámos lá o resto da manhã, entrando em todas as salas, parando aqui e acolá, porque havia sempre um pormenor — um quadro, um livro, uma condecoração, uma velha mangueira, uma farda antiga, um recorte de jornal… — a evocar histórias, que o Dr. José Alfredo Almeida me ia contando. Não podia ter tido melhor cicerone na visita há muito prometida e sempre adiada.
Nessa manhã de Agosto, poucas pessoas se encontravam no edifício. Talvez por isso, à medida que o Dr. José Alfredo ia acompanhando a nossa observação de quadros, objectos e documentos com a evocação de nomes de bombeiros da Régua que fizeram a história secular da instituição, ressuscitassem na minha memória outros rostos e imagens, encarnando os mesmos ideais de heroísmo, abnegação e solidariedade. E rememorava fogos na Mantelinha, há umas boas três décadas, as labaredas altas subindo a encosta, desde a Fraga Ruiva ao cimo do serro, lambendo pinhais e matos, num Agosto quente, a aflição da gente de Covas, imprecações, súplicas a S. Domingos, uma correria desordenada no meio da noite, a aldeia sufocada de fumo. E o povo a subir em magotes pelos caminhos da serra, gritos roucos abafados pelos lenços molhados que confundiam os rostos, a seguir os bombeiros, só eles pareciam serenos naquele combate incerto contra as chamas. Provavelmente, seriam bombeiros do Pinhão ou de Sabrosa, mas isso pouco ou nada importava, se a memória os trazia de regresso àquelas salas da corporação da Régua, onde se acumulavam medalhas de outros heróis e heroísmos…
Afinal, a visita tão adiada ao quartel dos Bombeiros da Régua ultrapassou tudo o que podia imaginar. Bem me dissera o Dr. José Alfredo Almeida do seu empenho na preservação do património histórico da associação a que preside. Pude testemunhar o carinho devotado a cada elemento desse património já secular, tanto como a vontade de realizar novos projectos, como a organização da biblioteca, onde se guardam relíquias vindas da Biblioteca de Maximiano de Lemos.
Por tudo, bem-haja Dr. José Alfredo Almeida!
 
Porto, 28 de Novembro de 2012
Gaspar Martins Pereira