quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Vale Abraão


Foto: josé alfredo almeida

Vale Abraão é também um grande filme de Manoel de Oliveira. 
Nele se conta a história de Ema, uma mulher de uma beleza ameaçadora. Para Carlos, o marido com quem casou sem amor, "um rosto como o seu pode justificar a vida de um homem".O seu gosto pelo luxo, as ilusões que tem na vida, o desejo que inspira aos homens, fazem-lhe valer o epíteto de "A Bovarinha".Conhecerá três amantes, mas esses amores sucessivos não conseguem suster um sentimento crescente de desilusão que a leva a definir-se como nada mais que "um estado de alma em balouço".

Manoel de Oliveira inspira-se na história famosa de uma heroína que já entrou no imaginário romântico, mas utiliza-a como um verdadeiro conhecedor, de tal forma que se torna possível improvisar e assim criar o novo a partir do conhecido. Como essa musiquinha que todos temos na cabeça, A Sonata ao Luar de Beethoven, que literalmente acompanha Ema e à qual respondem outros "luares" para outras personagens. Se este filme com acentos musicais e de formas profundamente femininas contém em si todas as gradações de um sentimento erótico, isso deve-se, acima de tudo, ao facto de Oliveira permanecer obstinadamente um cineasta lírico.(...) 
A grandeza do lírico está em que na base da imagem precisa sempre do texto escrito com o qual pode em seguida compor à sua vontade, è um filme concebido como uma música de partitura, mas a partir do libreto.(...) 
Contra todas as ideias feitas, em vez de nos convidar para uma educação sentimental, Manoel de Oliveira apela a um cinema de sensações, mais que à sedução de um cinema de sentimentos. Em Vale Abraão, não há senão cores (todas as da natureza), sons (todos os do mundo), cheiros (como os cigarros que Ema aspira), música, gestos, formas, deslocamentos. Como o quarto arranjado por Maria do Loreto, mulher letrada, para que o marido possa receber as amantes com todo o conforto, também o filme acolhe o reino dos sentidos. Para que a sensualidade do espaço se anime num movimento erótico, Oliveira filma, ultrapassando claramente o mero dispositivo teatral, "as entradas e as saídas"... O movimento secreto e perpétuo, a relação sexual que passa da vida à morte, do momento em que se entra ao momento em que se sai. Vale Abraão poder-se-ia resumir a uma sucessão de entradas em cena, onde se fazem apresentações, como acontece com as três criadas na cozinha, e de saídas de cena e como o último e grave olhar que nos dirige a velha tia ao fazer o sinal da cruz, e de chegadas e de partidas (vejam-se as viagens repetidas de Ema ao Vesúvio ou o extraordinário plano da partida da muda Fitinha com a trouxa na cabeça), de idas e regressos amorosos, de idas e vindas em casas burguesas. Em Oliveira, qualquer "entrada no plano" ultrapassa a alusão técnica e torna-se actividade física: veja-se o momento da chegada ao baile de Ema, que marca a sua entrada no mundo, soberbamente sublinhada pela forma como ela "faz a sua entrada", primeiro em plano de fundo que segue o instante de hesitação antes de entrar no salão... 
As múltiplas personagens de Vale Abraão estão sempre entre duas portas, ou na ombreira da porta, diante de uma janela aberta, no meio de uma refeição, no centro de uma discussão, em frente do espelho, etc. Ema é o corpo feminino do entre-dois, entre dois amantes, entre dois locais, entre a vida sonhada e a realidade da sua existência. É isso que lhe dá aquele ar inatingível, entre a vida e a morte. Este movimento inscreve-se por inteiro e com muito humor desde o início, quando ela caminha desde a casa paterna até ao fim do jardim que dá para uma curva da estrada em baixo e de onde ela pode enfim deslumbrar com a sua beleza os automobilistas que passam, de tal forma que há acidentes graves e "mesmo mortes"... Mas a sociedade dos homens velará para que tudo entre na ordem. E é a esta ordem, a própria negação da vida (e da morte) que Ema quer escapar, sem de todo o conseguir. (...)
Sem a mínima perversidade mas com a máxima perturbação, o filme de Manoel de Oliveira é colocado, do princípio ao fim, sob o signo do feminino, de um olhar feminino pousado sobre o mundo, o olhar de um cineasta que abarca literalmente o movimento erótico infinito do tempo no espaço. E não se julgue que esta é uma história de um tempo antigo que veio visitar o espaço do presente, que este é um cinema que dá vida e realidade a fantasmas.
Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, é um dos mais belos filmes do mundo.

Camille Nevers, Cahiers du Cinema n.º 469, Junho de 1993

Sem comentários:

Enviar um comentário