terça-feira, 30 de julho de 2019

O prazer do lazer

Foto:josé alfredo almeida




O lazer é o melhor dos bens

Sócrates


    Está montado o cenário. Uma onda de brancura clarifica, mais ainda, a luminosidade azul de dias estivais. Um Douro sossegado redime-se dos seus maus azeites vindos ao de cima de águas barrentas e descontroladas. Mas isso passou. Os reguenses já se conformaram com estas mudanças de humor. E a nova temporada de uma das grandes vítimas há-de ser compensadora. Amansada a fera, bons dias virão.
   Aguarda os clientes este espaço de lazeres e de prazeres, de leituras e de contemplações, de silêncios e de trocas de notícias, de ataques constantes a tablets e a telemóveis sem direito a férias. É um símbolo de progresso, de modernidade, de bem receber e bem servir quantos gostam do odor ribeirinho, de apreciar a irrequietude de ondas buliçosas, a desafiarem aves em voos rasteiros e interesseiros. É, também, um bom gosto lúdico a não desfeitear o aperaltado cais onde se passeiam passos miúdos, se reboliçam crianças, se apressam turistas atrasados na compra de chapéus contra a torreira de tombadilhos.
    Esplanada de café. Um alinhamento matinal e disciplinado, como em casa arrumada, à espera de visitas.  Uma quase ilha com vistas de vinhas, de embarcações a motor em arremedo de rabelos recuados, de iates de cruzeiros de doces águas, de comboios cautelosos, cromaticamente em harmonia com a paisagem.
    Apesar da brisa ribeirinha, uma habituée, de cedos levantares, parece a postos para receber raios quentes que lhe disfarcem a palidez de corpo poucamente vestido.
    Guarda-sóis em aprumo militar condizem com peitos de gaivotas. Em posição de descanso lembram gatos pingados de uma China onde branco é luto. Ladeiam-nos primos estravagantes, apostados na diferença, ostentando, no cume de seus pedúnculos erectos, corolas de túlipas que a manhã fez desabrochar em toda a sua pujante  beleza. Enquanto uns prolongam o descanso vertical, os outros, de copa invertida, apressam-se a entrar ao serviço, numa habilidosa jogada de antecipação, quiçá a pensar em medalha de bons serviços prestados!       
    Lazer. Prazer de nada ter para fazer. Privilégio a encaminhar os nossos passos para junto de Fernando Pessoa:



LIBERDADE



Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada.

Estudar é nada.

O sol doira

Sem literatura.



O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa…

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M. Hercília Agarez
Vila Real, 30 de Julho de 2019 

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Arte em flor

Foto:josé alfredo aleida






Passou fada por aqui:
de suas mãos mágicas
nasceu arte em flor
  

M. Hercília Agarez

domingo, 28 de julho de 2019

Este instante parado




(...)
Hoje não sofro e posso dizer-te
sobre os campos, sobre a terra seca
que engoliu toda a chuva dos dias que
pasaram a terra suspensa debaixo
dos pés e digo paz e que fecho
o amor simples da rua  beleza grandiosa
fiz paz e o céu sopra o voo planado
de muitos pássaros pequenos e simples
que nunca poderão entender a serenidade
grandiosa do céu adormeceu o nosso filho
em ti e tu e ele são o que respiro neste dia
sem vento para mim não quero mais que
este instante parado


José Luis Peixoto

sábado, 27 de julho de 2019

A explicação invisível do amor

Foto:josé alfredo almeida




«— E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.»
Herberto Helder, Poesia toda, Assírio & Alvim, 1996.





A posição dos ponteiros do relógio é apenas
um exercício de repetição – extingue-se o tempo
como se substituem os bolbos nos canteiros da
varanda, convém que o espanto ou o esquecimento,
verso e reverso da mesma realidade, não existam
para que a desolação não se instale e haja para
cada flor uma estação.

Assim, o que te prende é o efeito de espelho
que cada imagem pode ter no contorno oculto
de um instante. A percepção de quem fotografa.
O perfil de uma memória capturado pelo obturador.
O rosto de uma mulher reflectido entre Paris e
Havanna, criando a divisão entre a noite e o dia.
O olhar dessa mulher perdurando no fulgor do
silêncio que, por fim, se instala no poema.

Desfeitas todas as ilusões acumuladas, camada
sobre camada, película sobre película, nada restará
à superfície do espelho. Fragmenta-se, em ti,
a explicação invisível do amor.



Sandra Costa

sexta-feira, 26 de julho de 2019

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Calmaria

Foto:josé alfredo almeida



Quietos, no jardim,
mãos serenadas. Na tarde,
o som das cigarras.



Yberê Líbera

domingo, 14 de julho de 2019

Alguém que se vai embora





"Quem nos virou assim  do avesso, que
o que quer que façamos temos ar
de alguém que se vai embora?
como esse
se volta na colina mais distante
para ver todo o vale inda uma vez-,
assim vivemos sempre num adeus"


Rainer Maria Rilke

sábado, 13 de julho de 2019

Nem só de verde vive o Douro…

Foto:josé alfredo almeida



Azáleas vermelhas
por entre as pedras-
lágrimas de cuco

Matsuo Bashô





    Não há confusão possível. Não são de Minho, estas vinhas. Essas, de construção arquitectónica, formam ramadas densas, amparadas a casas ou a outros esteios, tomando a forma de caramanchões ou de pérgulas. Tão convencidas da sua aristocracia minhota que nem se lembram que estão enforcadas!…. Regalam-se com os encómios de quem lhes bebe as sombras, antes de lhes emborcar o vinho. Foge-lhes o pé para o tacão alto!

    No Douro, a morfologia do solo impõe uma organização mais modesta de cepas, tortas e direitas… São bardos baixos, quebra-costas de vindimadores, de “roubadores de ladrões”, de tantos quantos lhes satisfazem os caprichos de senhoras do vinho. São rés- do- chão de variável pé direito, erguem a vista para altos que de altos as miram. Convivem bem com a diferença. Têm os seus trunfos, o seu modus vivendi, os seus timings. Apostam na diferença. E quando as flores primaveris das altivas fruteiras puxam pelos seus galões e desatam a florescer ao desafio, elas, de floração tímida e infantil, despercebida à vista desarmada, riem para dento, remoendo: - não esperais pela demora! Porque as suas cores resplandecem no fim de ciclo, em folhas de desforra.

    Despedem-se da letargia invernal com lágrimas nos olhos, gotas de seiva saídas de pontas poupadas a podas prudentes.  Não é choro de luto, antes de emoção, por abrirem portas a um novo ciclo, já com renovos à bica, prontos para reverdecerem negros cascosos.

    E, atingida a maioridade, aí estão elas, as vinhas, encavalitadas, formando linhas onde espíritos poéticos podem ler versos de epopeia. Poesia são também as flores de arbustos, quietos e trepadores, que as coroam em espaços sobranceiros: glicínias, buganvílias, rododendros, acácias, cameleiras e outras graciosidades naturais, prontas a refrescar olhares viciados nas belas cores da vida. Nas fortes cores do Douro.
    

M. Hercília Agarez
Vila Real, 13 de Julho

terça-feira, 9 de julho de 2019

Dunas

Foto:josé alfredo almeida


Ainda que secos os olhos
o pensamento e as mãos 
Ainda que secas as dunas
e os beijos e os abraços
ainda que ao longe e mesmo ao perto

Ainda que os rostos envelheçam
e as horas pareçam não acabar
Ainda que os anos nos consumam
e as dores nos humedeçam
serás sempre tu, óh mar
a eterna testemunha dos amores maiores
Ainda que qualquer um de nós se afaste
e feneça ... porque assim tem de ser
ainda que de ti ninguém nada leve
serás sempre, óh mar
a eterna testemunha
Ainda que chores
tu e eu

Dúlia Soares

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Maré viva





Enchi um frasco com o mar que me ofereceste.
Dei às minhas mãos os corais deste em forma de anel.
Sentada na areia molhada que sobrou, 
trouxe um punhado comigo que guardo em segredo, 
no secreto dos olhos.
São estes os grãos que me fazem arder a alma.

E em fogo, 
guardo-te na imensidão do céu carregado de estrelas. 

E tu és a maior.
 A que me ilumina.
Não mais acendi a luz do quarto onde durmo sem ti. 
E arrecado a cada dia os teus gestos na gaveta da espera.
Ficarei assim até que venhas, de manso, amar-me.




Dúlia Soares

domingo, 7 de julho de 2019

Talvez

Pintura Margarida Almeida




Talvez eu tivesse guardado o vento, o que entrava em mim por ti
talvez se eu tivesse dito o que não via, e visto o que não disse
talvez se a hora inacabada tivesse sido o começo de tudo, e as horas
infinitas o desejo de se tornarem dias
talvez se as mãos se tivessem apegado e colado, aos beijos que
sonhámos e aos que esquecemos, talvez se a lua e o sol se namorassem
e os caminhos se diluíssem em flores e cheiros e sabores
talvez se a nua e crua verdade se esvanecesse
num só olhar, teu e meu, nosso
talvez se tudo isto tivesse acontecido
talvez eu não te tivesse amado
E talvez depois de tudo isto
eu nunca te tivesse esquecido
e talvez...
fosses hoje o meu amor
o prometido.




Dúlia Soares

sábado, 6 de julho de 2019

Um ramalhete de casas

Foto:josé alfredo almeida





Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento

     Alberto Caeiro / Fernando Pessoa




    Uma turma de casas novas aninha-se em cibo de terra sem plantio. Combinaram tamanhos, feitios, cores. Sugerem retalho suavemente colorido em manta de verde matizado. Sossegados, fazem pela vida os vinhedos estivais. As oliveiras, essas, olham-nos das suas alturas de vocação. Nem uns, nem outras, tencionam arredar raízes daquele solo. É deles, de direito adquirido. Dali não saem…

    Não se lobriga xisto nem granito. O feio e triste betão está escondido atrás de rebocos das cores de flores fruteiras. Viver remediado e limpo, de carro à porta. Cabeças com tino o merecem.

    A sobriedade da arquitectura rural em tempo de mostruários de azulejos, de alumínios ofuscantes, de leões, dragões e águias, ao gosto do freguês. Isto também é Douro, um Douro de garras afiadas para desvirtuadores da sua fisionomia. A beleza da simplicidade. Da identidade. Do recato.


M. Hercília Agarez
Vila Real, 06 de Julho

Eternamente Douro-868

Foto:josé alfredo almeida

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Como eu vejo

Foto: josé alfredo almeida




Não sei se vês, como eu vejo.
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação

(...)

Miguel Torga

terça-feira, 2 de julho de 2019

Flor do campo

Foto:josé alfredo almeida


Ninguém
oferece flores.

A flor,
em sua fugaz existência,
já é oferenda.

Talvez, alguém,
de amor,
se ofereça em flor.

Mas só a semente
oferece flores.



Mia Couto

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Oásis na paisagem





Muro branco bem caiado
é assento feminino.
Um senhoril penteado
emoldura o rosto fino.

No pescoço um colar,
Abat-jour sobre a cabeça,
sandálias a estrear
tudo quanto a favoreça.

Cruza pernas com mestria,
tem corpo envolto em folhagem.
Com sorriso de alegria
é oásis na paisagem.


M. Hercília Agarez