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Chegara o seu tempo de recordar, que, com amar, é dos verbos mais sérios da vida."
Reformou-se com um misto de prazer e
desconforto; não sabia definir bem: um aperto onde a vida se enuncia ou o
prenúncio de uma saudade em que a mesma se atormenta, uma incoerência
entre o que se diz e o que se faz ou o vazio de um fim que tem de
acontecer e de que se ignora o depois, um alívio de incumbência ou a
certeza irremovível do tempo.
Lembrou-se de quando fez o espólio, completado o serviço militar
obrigatório, no regresso de África. Depois de ter sonhado, a todas as
horas, com esse dia, perguntara: «E agora?» Agora tinha sessenta e cinco
e não vinte e quatro anos, o futuro encolhera, mas ainda teria tempo de
saber se é mais fácil ou mais difícil polir uma identidade quando se
dobra a esquina do meio século. Sentia-se dono de uma serenidade sem
desalento porque o passado não lhe remoía o presente e nunca se sentaria
à espera das tábuas necrológicas. Uma vaga nostalgia de fim de ciclo e o
afastamento dos rostos e das camaradagens ensombravam-lhe a decisão.
Recuperaria os agrados antigos quando os livros o faziam viajar pelos
caminhos da fantasia ou lhe levantavam dúvidas desconhecidas; ouviria as
vozes que lhe ecoavam dentro enquanto o sono demorava; sentiria a
revolta pelas mediocridades que excluímos de nós, num auto-convencimento
de suficiência que, egocentricamente, nos compraz; observaria as
pessoas e catalogá-las-ia pela testa, os olhos, o nariz, o sorriso, o
falar, a pose, o andar, os gestos, fotografá-las com a distância do
desprendimento que não concentra a obrigação, aquela voluptuosidade de
adivinhar nos outros a (dis)concordância entre o parecer e o ser. Não
seria um tíbio praticante nem um pequeno burguês preocupado com o
estatuto, mas o que o tempo desse que é sempre o contrário do que se
deseja. A vida ensinara-lhe que não há prudências nem regozijos
programados, pois ninguém controla os desígnios. Convencia-se, por
vezes, de um fatalismo insuperável e nele justificava os desaires,
ausentando-se de um tempo que lhe cheirava mal, de um mau gosto
intragável, e pouco lhe dizia a vida sem princípios com os deuses todos a
morrer como se as gentes os inutilizassem. Vivia-se uma idade de
ausência de modos, sem regras; matava-se como quem não reprimisse um
instinto; insultava-se como quem praticava um costume; cortava-se com a
amizade, sem um arrependimento, como se só a implicação creditasse o
carácter; apunhalava-se uma gratidão como quem risca um erro
ortográfico. Aprendera que noventa por cento do que se faz é
inaproveitável e os dez restantes é que salvam qualquer mortal. Amava a
vida, mas não esquecia a morte. Era um conflito entre a luz e a
escuridão. A morte, era-lhe essa marca da infância, semelhada pela vida
fora, do tamanho de uma sombra poligonal, conjecturada e não vivida. O
pai morrera cedo quando ainda era um nascituro. Partira sem lhe dizer
adeus, um adeus sentido, com lágrimas e com dor. Não conhecera o Pai nem
sofrera a sua morte, e morte que não é sofrida nunca se aceita. Fora
sempre a sua vulnerabilidade, a sua angústia, uma ferida que se
disfarça, mas não sara. Finar-se-ia com essa orfandade incessante, nunca
permutada. A morte, era-lhe, assim, uma injustiça divina e uma
ingratidão do destino porque, crente, nunca a compreenderia na sua
ocasião, suportando-a em silêncio, contra os risos e as incompreensões,
os desprezos e as raivas, um castigo sem culpa, impossibilitado de
apresentar provas e testemunhas da sua inocência. Transportou essa
memória negra dos mortos falados nos caminhos da aldeia, as pessoas a
fazerem-lhe festas como a um gato de luxo triste, e as vozes cochichadas
dentro de casa a encobrirem segredos para evitar agoiros.
Da janela do seu quarto, olhava a rua cheia de carros, aflitivamente
parados, os transportes públicos, biombos laranjas, engolindo pessoas de
cheiros disfarçados com lavanda ou almíscar, calças justas a amparar as
carnes e a atiçar as varizes, olhos esfiapados de sono, ostentação de
roupas e anéis, cabelos de gel e olhares de cima, misturados, a
contragosto, na selva dos dormitórios.
Chovia desalmadamente, uma chuva oblíqua ao sabor de um vento de pedras
que vergastava tudo, um frio tão forte que nem o roupão lhe impedia o
sentir. Respirava-se um ar de malícia, degradação e restos de capricho;
dir-se-ia a insurreição do céu que derrubava árvores, casas, pontes e
vidas. As televisões, os rádios e os jornais não paravam na descrição
das tragédias que enlameavam terras e enodoavam almas. Era um retrato
incorrigível a que não se pode alterar o vazio dos rostos na falência dos
sorrisos. Parecia tudo estilhaçado num ruído de vidro antigo. Os velhos
diziam que era uma maldição da natureza por tantos e tantos anos a
escarnecê-la, os novos calavam-se, incapazes de entenderem as
profundezas do mundo.
A sua rua era um beco de rupturas, ardil de invejas e, até, o
engana–vistas do ódio. Todos queriam andar, afirmar a sua atitude, e só
não passavam por cima uns dos outros porque isso corresponderia a uma
destruição mútua. Olhava-os com aquele deleite de quem já tendo vivido
um mal e a ele escapado, se via, agora, livre de voltar a suportá-lo.
Acabavam-se os acordares com o rádio a dar as desgraças das sete, a
noite ainda pesada, a chuva a zunir na floresta cimenteira.O emprego
transformara-se num trabalho à tarefa, vigiado por computadores e olhos
medrosos de não agradarem aos contabilistas dos cifrões; serviços
quantificados em minutos de qualidade inútil para a engenharia dos
milhões. Longe iam as datas em que o dinheiro tinha a normalidade do
sustento e não a exclusiva ganância de um lucro, em que se solidarizavam
valores e o companheirismo defendido como arma de classe. Agora, era
tudo de uma dolorosa deselegância e indiferente comodismo; ontem, havia
pobres e ricos, hoje, desgraçados e milionários; ontem, lutava-se por
reciprocidades, hoje, por imitabilidades. A revolução, nascida de um
grito refreado durante décadas, nacionalizara, de afogadilho, os grandes
grupos para depois os revender aos antigos ou novos donos. Era a
quitação das facturas, o ajuste de contas, a adaptação ao novo
liberalismo de tiques nunca esquecidos, mesmo que alguns falsos
estalinistas, praticando astuciosa duplicidade, fingissem amargura com
os bolsos já cheios na amálgama revolucionária.
Quando a tecnologia começou a dispensar o raciocínio e a apelar ao
titerismo, a ginástica mental sorrateiramente despedida pela eficácia
cibernética, os sentimentos anestesiados pelo clorofórmio dos
indicadores de rentabilidade e os corações endurecidos pelas cantilenas
tecnocráticas, poucas dúvidas lhe restavam de que o seu prazo de
validade estava a chegar ao fim. Concebia a reforma à moda antiga quando
da função se saltava para um púlpito de onde se viam as pessoas e as
coisas com a calma da experiência, mesmo de azimute encurtado. A viagem
para o esquecimento tinha novos entendimentos e as prateleiras
empresariais estavam cheias de inocentes ultrapassados pelas modernas
gestões de recursos humanos para quem um SER é uma atrapalhação.
Juntaria os seus anos de militar à força, descontados a preço rapace
como se o tempo dado às fardas fosse um interlúdio turístico, e
voltar-se-ia para a nascente da sua esperança para com ela percorrer as
últimas milhas do seu termo.
A vida era de uma brevidade assassina e os afectos não a comandavam. A
sobrevivência fazia-se pelo assentimento do silêncio. Quando afrontava a
pestilência, perdia sempre; não sabia mover-se no charco da
intolerância. No meio, até ao estoiro, ficavam os espasmos da alma.
Pensava, pensava muito, e entusiasmava-se tantas vezes calado que, quem o
visse, julgá-lo-ia um asténico de sorriso exegético ou dúplice, com as
lágrimas sobressaltadas tanto na inquietação quanto na placidez.
Pertencia àquele modelo a quem se pergunta se algum problema o incomoda e
a explicação nunca se dá porque é impossível entender como resposta: « É
o mundo que me aborrece, tão injusto ele é. » Dizer isto é um estorvo,
uma idiotia, uma excentricidade que coloca qualquer um no lixo
esquizofrénico. Mas era a sua resposta, não tinha outra, e, quando o
Inverno lhe castigava os ossos, só a ironia o ajudava a suportar as
horas. Era um ironia metálica, mistura de palavra laminada e olhar
cortante - tamanho o sarcasmo - que condescendia com a perturbação e o
insulto alheios como se eles lhe justificassem, ainda mais, a
desafectação com que os encarava.
Iria, então, encher as folhas virgens dos seus cadernos, ditar-lhes
memórias e hojes, mesmo que não achasse o termo correcto para o que se
sente e se quer dizer; escrever até ao cansaço, até doer, correndo os
perigos de não o perceberem, na desilusão das suas esperas e na acusação
dos seus conceitos; escrever para espantar demónios, destruir
fantasmas, repelir sofomaníacos, aplacar despeitos, desfiar paixões e
dedilhar desejos. Ele sabia que quem escreve não é eunuco, e dar luta à
frieza humana contraria o fim civilizacional. Por isso, escreveria,
mesmo que as gavetas engolissem as suas palavras, mesmo que um dia as
rasgassem, mesmo que um dia as queimassem. Floresceriam com ele numa
fraternidade impaciente e perturbadora, num sonho de sede insaciável.
Chegara o seu tempo de recordar, que, com amar, é dos verbos mais sérios da vida.
M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.