sábado, 30 de março de 2019

Chamem-lhes o que quiserem…

Foto: josé alfredo almeida


    Estamos em época de todos os desabrolhos. O tempo vai de feição, bem ao jeito das espécies vegetais que hibernam sem saírem do seu habitat, contrariamente a certas aves que, aos primeiros arrepios, metem o rabinho entre as patas e rumam a climas quentes.
Pois aqui estão as nossas prezadas amigas, as vinhas do Senhor, as vinhas de senhores, airosa e prazenteiramente surgidas da escuridão invernosa.  Diz o ditado que “quem poda em Março é madraço”.  Esta foi tosquiada a tempo e horas de rebentar com os dias crescidos, ensolarados. E aí está ela, respeitando as leis do seu destino, exibindo três filhotes saudáveis, de um verde infantil, a alegrar-lhe a ainda nudez. Lá virá o tempo em que lhe arranquem os ladrões, essas excrescências com a mania de meterem o nariz onde não são chamadas…
Chamem-lhes o que quiserem – renovos, rebentos, brotos, novedios, vergônteas, desabrolhos. Quem com eles ou deles fala, essa gente do trabalho, chama-lhes pampos, pelo menos neste Douro de letras primárias. Será, sim, uma corruptela de pâmpanos. Que interessa? O povo poupa no que pode, até nas sílabas engolidas em seco.
 A César o que é de César. Pâmpanos formam a coroa com que Dionísio, a versão grega do tão cantado Baco, é apresentado na iconografia mitológica. Não acreditam? Consultem o sábio Dr. Google, bem merecedor de vários doutoramentos honoris causa…E esta, hein?

M. Hercília Agarez
Vila Real, 30 de Março

sexta-feira, 29 de março de 2019

Namorados

Pintura de Margarida Almeida, em exposição na Galeria Abismo Azul - Porto



Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


Nuno Júdice

quinta-feira, 28 de março de 2019

Ternura em flor

Foto:josé alfredo almeida




Brisa ligeira
A sombra da glicínia
estremece


Matsuo Bashô

terça-feira, 26 de março de 2019

Paisagem escultura

Foto:josé alfredo almeida



Somos escultura do acaso, 
forjada pelo vento
feita à mão do desejo
de vida, de eternidade.



Evan do Carmo

segunda-feira, 25 de março de 2019

Olhos de ver

Foto:josé alfredo almeida



    Há lugares neste Douro emblemático que, vendo o visitante de saída, lhe dizem com anfitriã bonomia.: - Volte sempre! Até à próxima! Cá o esperamos para novas descobertas! Galafura é um deles. Primeiro a aldeia, a abrir os braços hospitaleiros logo à entrada. Uma religiosidade tão intrínseca ao espírito do povo, marca, iconicamente, o início da escalada até um miradouro de todos os deslumbramentos, teimoso na veleidade de levar a palma a concorrentes de santos e de vistas.
    Aí situou Miguel Torga a acção de um dos seus mais dramáticos contos – “Maria Lionça” (Contos da Montanha), arquétipo de mulher rural com tanta força de alma como de corpo. Pois não carregou ela o filho morto, do comboio até à povoação, para aí o devolver a chão de raízes de ambos?
    Galafura. Uma subida íngreme, em caminho de traçado sinuoso, serpenteado, alerta para a sinalética sem tirar o fôlego a motores todo o terreno, resignados a pequenas velocidades, não vão sair-lhes os bofes pela boca…
    Olhando para a direita, ao subir, e para a esquerda, ao descer, os condutores embevecidos vão farejando bermas compreensivas para encostagens exigidas pela gula de degustar a paisagem, indescritível com palavras, por não terem elas cor, nem cheiro, nem som. Logo se gera empatia entre visitante e visitado, depressa transformada em flirt romântico, alheio a olhos bisbilhoteiros de câmaras fotográficas.
    S. Leonardo de Galafura, o taumaturgo, com direito a habitação sem mofo nem morcegos, mas condenado a dormir ao relento, não se satisfaz com olhares de olhar. Ele, e os restantes elementos do seu reduto sagrado, de que é o centro nevrálgico, entendem que são dignos de ser vistos com olhos de ver. Como é o caso do malogrado marco geodésico, amparo de traseiros de gentes em contemplação babada de rio e margens, a quem não ocorre interrogarem-se sobre a utilidade daquele cone granítico com cara manchada de velha macilenta, tutelado por oliveira milenar. É pena. Ficariam a saber encontrarem-se a 640 metros de altitude, informação calada, idêntica às que são debitadas por pilotos de aviões.

    Esta imagem de rochedo escultural exemplifica os dotes artísticos da mãe natureza. Muitas lições de arte oferece ela! Pena que muitos dos que são chamados a vê-la se limitem a olhá-la. É a mesma coisa, sussurrarão os leitores melindrados. Não para mim. Para um tal de Hamlet, “ser ou não ser, eis a questão”. Para mim, e neste contexto, a questão é olhar ou ver…    


M.Hercília Agarez
Vila Real, 25 de Março de 2019 

sábado, 23 de março de 2019

Quando aparece uma flor

Foto:josé alfredo almeida




Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor...



Chico Buarque

sexta-feira, 22 de março de 2019

Flor da amendoeira

Foto: josé alfredo almeida



E é nisto que se resume
o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!


Cecília Meireles

quinta-feira, 21 de março de 2019

Chave da poesia

Foto:josé alfredo almeida



E a chave
Do teu coração?
Não vou marcar passo?





Francismar Prestes Leal

quarta-feira, 20 de março de 2019

Primavera!

Foto; josé alfredo almeida


Demorou este ano,
Mas de repente, em toda a parte -
Primavera!




Paulo Franchetti

terça-feira, 19 de março de 2019

Um belo pôr-do-sol...

Foto:josé alfredo almeida




Fecham portas
E se abrem janelas...
Nelas, um belo pôr-do-sol...



Francismar Prestes Leal

segunda-feira, 18 de março de 2019

Mais belo, só o amor

Foto:josé alfredo almeida




Desabrochou a manhã
em esplendor de luz:
mais belo, só o amor.



M. Hercília Agarez

domingo, 17 de março de 2019

Estar quieto

Foto:josé alfredo almeida




Nos finais de tarde,
aquieto-me com meus versos,
e em silêncio amo-te.


António Carlos Menezes

sábado, 16 de março de 2019

Cercado de solidão

Foto:josé alfredo almeiida




Cercado de solidão,
em sossego de silêncio
o pescador pesca paz.



M. Hercília Agarez

terça-feira, 12 de março de 2019

Serena luz

Foto:josé alfredo almeida



Ninguém nos vê 
mas estamos 
Somos 
Ficamos 
Na cor de um outro olhar 


Edgardo Xavier

segunda-feira, 11 de março de 2019

Luz

Foto:josé alfredo almeida




Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa,completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.


Cecília  Meireles

domingo, 10 de março de 2019

Onde a poesia é a paisagem

Foto:josé alfredo almeida




(...)
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!



Miguel Torga

sábado, 9 de março de 2019

Parecem mais verdes

Foto:josé alfredo almeida

Parou de chover:
No ar lavado, as árvores
Parecem mais verdes.



Paulo Franchetti

sexta-feira, 8 de março de 2019

Catarina

Foto: josé alfredo almeida




" Dezembro de 2013,
 Catarina Rodrigues, 22 anos, foi
    assinada por um grupo de amigos:   
 primeiro estrangulada 
e depois degolada.  
O seu  cadáver foi escondido 
numa horta junto ao caminho pedonal da Régua."






Luto é cor de mulheres
em dia de luta:
solidariedade.




M. Hercília Agarez

quinta-feira, 7 de março de 2019

E o que quer dizer uma nuvem?

Foto:josé alfredo almeida


Mas o que quer dizer este poema? - perguntou-me alarmada a boa senhora.
E o que quer dizer uma nuvem? - respondi triunfante.
Uma nuvem - disse ela - umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...


Mario Quintana

terça-feira, 5 de março de 2019

Entrudo

Máscara de Lazarim (Lamego)




"Nos dias gordos, dias de Entrudo, propriamente dito, comia-se à tripa fôrra a orelheira, o chispe e o rabo de porco. Ainda hoje se come, mas finge-se que não. A moda é ser frugal. O que se não faz, e os nossos pais faziam sem nenhuma cerimónia, é jogar o Entrudo, dando a esse desvario a cor de um dever santo. Eles mascaravam-se, enfarruscavam-se, emoleiravam-se como se cumprissem uma obrigação. É pena que não façamos o mesmo. Eu creio que as demências periódicas facultativas, toleradas, como a do Entrudo, livrariam o homem da demência contínua, inelutável, insuportável como aquela que aflige o mundo em nossos dias."


João de Araújo Correia

segunda-feira, 4 de março de 2019

Amanheceu...

Foto:josé alfredo almeida



Amanheceu...
E tudo é suave, outra vez.
Inspiro, fundo, a vida...





Francismar Prestes Leal

domingo, 3 de março de 2019

À margem da noite

Foto:josé alfredo almeida




Não tarda, o sol partirá
não deixando mais que a certeza das águas
e a luz
essa navegante cíclica das superfícies
essa desvendadora de espantos
partirá com ele
não deixando mais que a certeza das margens
ao alcance dos meus olhos náufragos.
Ainda bem que o aço frio 
reluz.
Ainda bem que há estrelas
e que o rio
é um céu invertido

à margem D'ouro que além me seduz.


Teresa Teixeira

sábado, 2 de março de 2019

Outro amanhecer

Foto: josé alfredo almeida





Aqui começa a nova caminhada
Se a levar ao fim, darei louvores a Deus,
Como meu Pai, aos despegar
Do dia ganho.
Não por haver chegado,
Mas por ter acrescentado
Um palmo de ilusão ao meu tamanho.



Miguel Torga