terça-feira, 30 de setembro de 2014

Lugar da Lua

Foto: josé alfredo almeida



Gosto do silêncio em que vivemos
quando nos encontramos

os longos olhares panorâmicos
os corpos que parecem apenas um
os lábios que falam calando as palavras

gosto desse silêncio
que é como um manto
como o ar em que as aves voam
como um vazio em que tudo é possível

é assim o nosso silêncio
que diz tanto de nós dois

Luís Ene

Pontes no verão


Foto: josé alfredo almeida

(Re)Conhecer a Régua-169






A Régua, vista da outra margem do rio, talvez nos anos 30, mas não tenho nenhuma certeza.
Quem fazem este homens no meio do curso do rio Douro, quase sem água, numa quente tarde de Verão?
Por mais voltas que dê a cabeça não consigo resgatar do tempo os mistérios que guardam esta fotografia.
Fico como aqueles homens com um olhar voltado para o cais fluvial sem movimento e uma terra parada no tempo, à espera dos barcos com turistas de todo mundo e do seu futuro classificado como Património da Humanidade.
Será que o fotógrafo desta imagem adivinhou tudo isto? Interrogo-me e, sinceramente, procuro há muito tempo uma resposta segura para aquilo que ali terá acontecido.
Na tarde do domingo passado, estive na noutra margem do rio, a margem esquerda, a olhar sozinho o novo cais e uma cidade que se deixava adormecer ao sol e no cheiro do mosto das vindimas. Um olhar muito diferente que como fotógrafo registei em novas imagens, uma realidade desenhada ainda na silhueta antiga da urbe e um mapa colorido do futuro.
Quem, agora, me diz, o que fazem aqueles homens todos reunidos no meio do rio Douro?

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Da outra margem-3

Foto: josé alfredo almeida

Da outra margem-2

Foto: josé alfredo almeida


Vista da outra margem, ao longe a Régua, ontem às 17.30 horas...com um céu de nuvens brancas mergulhado no meio do rio Douro...

Da outra margem


O meu Moledo-67


O meu Moledo-66


Roupa lavada

Foto: josé alfredo almeida

Naquele tempo,
as mulheres da minha terra
lavavam a roupa
sobre pedras modeladas,
na água límpida do rio…

O ensaboar,
o esfregar,
o enxaguar,
culminavam no arame,
na brancura a esvoaçar…

Para lá,
para cá,
para lá,
para cá…

rituais que se volatizaram,
como a água da roupa a secar…

Naquele tempo,
a roupa,
a nossa segunda pele,
tratada com tanto carinho…

Ana Freitas

Fez a vindima



Deus: No 1º. dia fez o Mundo
No 2º. criou o homem
No 3º. a mulher
No 4º. as plantas
No 5º. os animais
No 6º. os peixes
No 7º. descansou
O Duriense: No 1º Saibrou os montes
No 2º. Fez os socalcos
No 3º. os muros de xisto
No 4º. plantou a vinha
No 5º. colocou as pedras de bardo
No 6º. os arames
No 7º. Fez a vindima


José Manuel Lopes

domingo, 28 de setembro de 2014

sábado, 27 de setembro de 2014

Para sempre

Foto: josé alfredo almeida
  
 Miradouro de São Leonardo de Galafura, numa manhã luminosa de Setembro, em tempo vindimas no Douro.


"Somos sempre os mesmos, no desfolhar das gerações.
Somos os que colhemos prazer em fazer o vinho. Os que arroteiam a sua saúde, para o bem-estar das cepas. Os que nascem de ouro e morrem de xisto. Somos os privilegiados, condenados ao degredo das encostas. Amamos o Douro, com o conforto da dureza e a paixão do impossível.
Para sempre."


Gracinda Marques

Rio de Luz

Foto: josé alfredo almeida


A luz de
que falavas
quantos planetas dura a luz de que falavas
Há quantos planetas espero por ti.


Patrícia Lino

Luz do cais

Foto: josé alfredo almeida


Fosses tu um rio e eu
um seixo
lançado por mãos hábeis
para te tocar a pele
uma vez
e outra e outra e outra.
E mergulhar em ti.


Estela Bento

DOURO, Rio, Gente e Vinho



DOURO
-Rio, Gente e Vinho

Autor: António Barreto
Editora: Relógio d`Água, 2014



                                       "O Douro...não é a minha paixão, nem sequer o meu amor...
                                         O Douro também não é  lugar das minhas raízes....
                                         É muito mais.
                                         O Douro é voltar a casa."

                                      António Barreto, disse ontem na Feira do Livro do Douro, da Régua, na apresentação deste grande  livro sobre Douro. 


                                     "A verdade é que nada nesta região foi simples, ou sequer sereno. Tal como o vinho. Ou a vida."- António Barreto




"O Douro é o lugar de um feliz encontro. Nada faria prever que aquela região, outrora inóspita, fosse local propício para tão venturosa reunião. Da própria terra, vieram os lavradores e os trabalhadores da vinha e do lagar. De ali perto, dos vales do rio, os arrais e marinheiros. Do lado de lá da fronteira, a Norte, os Galegos, inesgotáveis construtores de muros e socalcos. Do Porto, adegueiros, administradores e comerciantes. Da Inglaterra e da Escócia, sobretudo, mas também da Holanda e de outros países, comerciantes, exportadores, colégios de Oxbridge, "Clubs" de Londres e "pubs" de Edimburgo. Ao fazer um vinho excelente, toda esta gente fez também uma região, uma paisagem e uma cultura.
Na verdade, o vinho do Porto não é um simples produto agrícola, mais ou menos típico, que se pode cultivar aqui ou ali. Com uma forte personalidade, é o resultado único daquele improvável encontro, mas também é o mais influente factor de modelação de todo o Alto Douro. O que esta região é hoje, deve-o ao vinho, à necessidade de o cultivar, armazenar e transportar. Os socalcos, quase até ao cume das montanhas, foram feitos para se plantar a vinha em proibitivos declives. Os mortórios, ainda hoje o perfil visível de numerosos vales, são os cemitérios dramáticos da filoxera. As quintas são a solução empresarial para uma complexa produção. A navegação do rio Douro, sem a qual talvez não tivesse havido vinho, abriu uma estrada de primeira qualidade, desde o século XVII.
Sabe-se que houve vinho no Douro desde os Romanos, pelo menos. Mas, vestígios desses, há-os talvez em todo o país. A obsessão vinícola do Douro só começa no século XVII. Os Ingleses e os Escoceses, que negociavam no Norte de Portugal, mais lá para Viana do Castelo, traziam bacalhau e panos e queriam ter algo para levar de volta. Ora, os britânicos, quando faltava o vinho francês, iam-no buscar cada vez mais ao Sul, acabando por chegar a Portugal e Espanha. Em Portugal, depois de terem importado um pouco de todo o lado, mas sobretudo de Viana e de Monção, foram procurando para o interior e um pouco mais para o Sul. No Alto Douro fez-se o encontro. Encontraram um vinho mais forte, mais colorido, mais encorpado: armas para vencer o transporte e qualidades para seduzir o consumidor. Mas também um rio que permitiria trazer as pipas até à beira-mar.
O resto é história. Este vinho transformou-se, nos séculos XVIII e XIX, na parte mais importante do comércio anglo-português. Em certos anos, foi o vinho mais importado em Inglaterra. Durante quase dois séculos foi o mais importante produto do comércio externo português, a principal origem de divisas. E também foi uma das primeiras fontes de receitas fiscais, situação que levou o poder político a legislar abundantemente sobre a vinha e o vinho. O governo português, pelo menos desde o Marquês de Pombal, sempre cuidou, com desvelo e severidade, do vinho que lhe era fonte de vida. Por isso o Douro constitui, desde 1756, a primeira Região Demarcada da história, exemplo que virá a ser retomado, desde os meados século XIX, pela França, depois pela Itália, Espanha, Alemanha e outros produtores de vinho. Em todas essas paragens se confirmou uma lei da vida: fazer um vinho é fazer uma região.
Solidamente estabelecido nos costumes, o vinho do Porto foi mudando sempre, ao longo dos anos. Com mais ou menos açúcar, mais ou menos álcool, "vintage" de garrafa ou "tawny" de pipa, consumido como digestivo, aperitivo ou fora de horas, o vinho do Porto foi evoluindo sempre. O seu princípio, a sua essência, poderá ser ainda a mesma de há três séculos. Mas a sua circunstância já não é. Até os consumidores mudaram. O que era quase um monopólio britânico é hoje universal. Entre os primeiros consumidores do mundo estão os franceses, os belgas e os holandeses. E até os portugueses, tradicionalmente um pouco avessos a este vinho, consomem hoje mais do que os ingleses.
Não foi só o vinho e o seu comércio que mudaram. Também a região, os homens e as mulheres, os modos de vida e de trabalho conheceram drásticas transformações, sobretudo nos últimos vinte ou trinta anos. As novas técnicas de plantação, de vindima, de vinificação, de transporte e de armazenamento alteraram de modo radical o "livro de horas" duriense. Esta rápida evolução, recente, contrasta com a longa imutabilidade de costumes e técnicas. Nos anos cinquenta deste século, cultivava-se a vinha, fazia-se a vindima e guardava-se o vinho de modo quase idêntico ao que as crónicas dos séculos XVII e XVIII nos relatam. Só os transportes tinham experimentado uma revolução, nas primeiras décadas do século XX, com a substituição do barco rabelo pelo comboio. Tudo é diferente, hoje, na sociedade e nas técnicas, com o que ficaram a ganhar os trabalhadores, quase escravos de uma natureza difícil. Tudo é diferente, naqueles atapetados vales, onde mal se percebe o colossal esforço que foi necessário para refazer montanhas. Apesar disso, sobre todo o Douro, paira a memória de lutas e batalhas, de abundância e crises, resultado de uma monocultura que tudo impregnou, das rochas às almas. E a modernidade não consegue esbater a recordação de dois heróis, símbolos de todo o Douro: o genial inglês Joseph James Forrester, Barão por mérito, morto no fundo do rio; e a formidável Dona Antónia, a "Ferreirinha", primeira entre os portugueses e mulher de armas entre homens que tudo viram.
A história da região confunde-se com a do vinho do Porto e com a do país na era moderna. O Douro participou em todas as lutas que fizeram o Portugal contemporâneo. Modernistas e conservadores; "franceses" e patriotas; liberais e absolutistas; proteccionistas e livre-cambistas; republicanos e monárquicos; autoritários e democratas defrontaram-se no Douro, ou por sua causa, com toda a vivacidade. Uma das mais famosas insurreições do povo da cidade do Porto, o Motim de 1757, teve o vinho do Douro como causa próxima. A Guerra Peninsular teve, em Mesão Frio e na Régua, episódios inesquecíveis. A Guerra entre dois irmãos, Pedro e Miguel, conheceu, no Douro, momentos de excepcional ferocidade. O mais famoso incêndio da história do Porto é sem dúvida o das caves da Companhia, em Gaia, onde arderam, por causa da guerra entre liberais e absolutistas, mais de trinta mil pipas de vinho. As incursões monárquicas, depois de fundada a República, deixaram, no Douro, marcas indeléveis. E os três mais conhecidos ditadores do Portugal moderno, Pombal, João Franco e Salazar, cedo tiveram, nas suas carreiras políticas, de se preocupar com o Douro. A verdade é que nada nesta região foi simples, ou sequer sereno. Tal como o vinho. Ou a vida."

António Barreto

Ler João de Araújo Correia-46




In "Revista do Norte",nº3 de Março de 1955

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

6.30

Foto: josé alfredo almeida

Segredos do Douro

Foto: josé alfredo almeida




a luz que nos teus olhos eu perdi 
e que na terra toda não mais vi. 

Luis Filipe Castro Mendes

Tardes infinitas

Foto:

  A Régua, ontem às 19.30 horas, perto do Cais da Junqueira 



É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água.

José Carlos Ary dos Santos

Douro de memórias-10


Despedida do sol

Foto: josé alfredo almeida

Cores de outono

Foto: josé alfredo almeida

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Luz dourada

Foto: josé alfredo almeida

  A minha Régua, num fim de tarde de Setembro....

Lugares da memória





A memória é um sítio estranho,habitado pelo sentir de cada um de nós.
Fui pela primeira vez à Biblioteca dos Bombeiros de Peso da Régua, com a minha primeira amiga de infância, a Filomena Tiago. Uma amizade forte e cúmplice como só as crianças sabem ter.
Esperava-nos uma sala que na altura me pareceu grande e solene.
À cabeceira de uma mesa, estava um senhor que nos olhou por cima dos óculos, e depois de nos ter explicado as condições para levar os livros para casa, deu-nos um cartão (penso que preenchemos uma ficha de inscrição, não estou certa disso).
Acompanhou-nos às estantes que separavam vários tipos de livros. Infantis, clássicos...
Já conhecia alguns daqueles livros, na minha casa o hábito da leitura era algo normal.
Mas era diferente. Ali era o mundo dos livros.
Demorámos a escolher, folheámos lemos um pouco... No meu caso tentava sentir o cheiro deles, coisa que ainda hoje faço com os livros comprados seja em primeira ou segunda mão.
Saímos de olhos a brilhar, e mundos nos braços para descobrir.
Sentada nos degraus das escadas de pedra da minha casa, com o Douro como cenário ao fundo, 
além do pequeno Polegar que eu tanto gostava de ler, reli nalguns casos, outros li pela primeira vez,
Júlio Dinis, Eça, Camilo, Garrett, Aquilino...
Todas as semanas, ia devolver os livros e escolher outros para ler, 
O Senhor Marinheira perguntava, invariavelmente: (agora já sabia o nome daquele homem grande, com um ar distinto e olhar bondoso)
- Então já leste os livros todos?
Eu respondia afirmativamente.
Ele sorria simpático.Penso que não acreditava na minha rapidez de leitura, mas fingia que sim.E era verdade.Os livros que tinha em casa já não me chegavam.
A Biblioteca dos Bombeiros era uma descoberta semanal, onde eu sempre descobria um livro diferente, uma personagem que me fazia sonhar um sonho diferente.
Mais tarde, quando voltei a reler os mesmos livros, alguns por obrigação escolar, foram outros livros que eu li.
Mas a magia ficou. O amor pela leitura também.
Aquela sala sempre muito organizada, o silêncio, o sempre atencioso Senhor Marinheira, o olhar cúmplice da minha amiga quando pela primeira vez entrámos por aquela porta encantada.
Vivem para sempre na minha memória.

Ana de Melo

O meu rio

Foto: josé alfredo almeida


"Necessito de o comprovar sempre que posso, a ouvir gemer os rabelos, a mergulhar os olhos na levada terrosa, a testemunhar a fúria dos cachões...É o regresso inconsciente do poeta e do homem à sua elementaridade vital. Ao soro, à hemoglobina, à pulsão..."

Miguel Torga

Dia escuro

Foto: josé alfredo almeida

Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro.

Antonia Pozzi

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Tradução do rio

Foto: josé alfredo almeida
  
Margem do rio Douro, ontem, às 18.30 horas, entre Mesão Frio e a Régua

Sento-me e traduzo o rio,
É difícil reproduzir
Esta coisa líquida,
São precisas palavras raras,
Expressões firmes,
Ritmos eternos,
Uma centena de fontes em uníssono
A contar de novo um mito antigo.
Durante toda a noite traduzi o rio.
De manhã
A minha versão tinha desaparecido.

Xhevahir Spahiu

Foram vindimar...


Foto: josé alfredo almeida

  
Palavras de elogio e de homenagem ao povo trabalhador duriense de António Barreto, um homem do Douro, que tão bem o conhece, o sente, o vive e, sobretudo, o estuda para falar do seu futuro, hoje com os seus horizontes muitos negros...
Basta olhar para o que os políticos neoliberais vão fazer com a Casa do Douro, reduzindo-a a nada, sem poderes nem funções, extinguindo aquela que foi a Casa que defendeu os lavradores mais pequenos e mais  desfavorecidos....

Crónica de uma morte anunciada

Foto: josé alfredo almeida


"A História do Douro  está ligada à sua Casa do Douro. A forma de associação que esta representa, o interprofissionalismo subjacente, é a razão de termos um Douro como o conhecemos. E  foi este Douro, criado essencialmente pelos milhares de pequenos produtores, que recebeu o galardão de Património da Humanidade. Não entende a História, é uma das maiores ignorâncias. Rapidamente, a Casa do Douro deixará de ser pertença dos pequenos produtores, para ser rapidamente dominada pelas grandes companhias e interesses laterais (financeiros) que aqui vêm mais uma forma de ganhar dinheiro rapidamente sem trabalho.
Privatizar a Casa do Douro, é absurdo. É medir tudo pela mesma rasa. É não entender que o Estado deve garantir nas suas mãos os mecanismos de controlo das actividades primordiais.
Privatizar a Casa do Douro é o primeiro passo para a destruição do mundo duriense tal como é. E se o Douro não for como é, deixa de ser Douro."

Francisco Gouveia in "Notícias do Douro", de 19-09-2014 

Vintage para uma vida




Vintage para uma vida

Autor: Artur Vaz
Edições Afrontamento, 2014



"Ao longo do livro o autor introduz-nos nos ambientes, tempos e ritmos da vida de uma quinta no Douro, levando-nos a conhecer as plantações e os trabalhos da vinha, as práticas de vinificação, a evolução técnica, as castas das videiras, o papel dos galegos na viticultura tradicional, as rogas, as categorias e a qualidade dos vinhos das diversas colheitas, as relações entre viticultores e negociantes, a evolução das exportações e as crises comerciais. Outras vezes, traça belíssimas descrições da paisagem, como por exemplo, da descida de Vila Real até Santa Marta, do Santuário de S. Salvador do Mundo ou de uma viagem de barco no rio Douro. E, ainda, referências, mais ou menos detalhadas, sobre tradições locais, da gastronomia ao imaginário popular, passando pelo bulício das festas e romarias." 

Gaspar Martins Pereira

domingo, 21 de setembro de 2014

Régua - paisagens de ouro

Foto: josé alfredo almeida

Museu do Douro-66

Foto: josé alfredo almeida

  A Régua, jardim do Museu do Douro, ontem, às 18,00 horas...

Douro de memórias-8


Ler João de Araújo Correia-45



                        João de Araújo Correia in  " O Alto Douro Cultural", de Junho de 1983

A Biblioteca dos Bombeiros




                                                     “Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca” (Jorge Luís Borges)

Estou no alto do Quartel Delfim Ferreira, na varanda da Biblioteca dos Bombeiros, no terceiro piso de um dos edifícios mais bonitos da Régua, onde sobressai uma imponente fachada esculpida em granito pela hábil mão de um grande mestre pedreiro, a observar a paisagem do além Douro, as vinhas de cores outonais que serpenteiam o Vale Abraão e, ao fundo do Salgueiral, uma curva do rio a espreguiçar-se, numa manhã intensa de luz.
Quando, há mais de cem anos, se formaram os bombeiros da Régua, equipados de um carro bomba e algum material rudimentar para apagar fogos, estavam bem longe de imaginar que a casa de leitura, que começou numa velha estante de mogno cheia de livros oferecidos, se tornaria, desde então, um lugar cultural de referência na Régua.
Quem ainda conheceu essa velha estante de livros e se deslumbrou com ela foi João de Araújo Correia quando, muito novo, acompanhava o seu pai, ao tempo bombeiro voluntário, ao quartel. Mais tarde, o homem e o escritor, sem sair do seu sagrado eremitério e com a ajuda dos seus amigos de Lisboa, conseguiu convencer a Fundação Gulbenkian, nos inícios dos anos 60, a fazer da velha estante da sua infância uma biblioteca ordenada, catalogada, com mais obras literárias e edições recentes. Se assim o soube idealizar, depressa lhe fizeram a vontade e nasceu a Biblioteca Dr. Maximiano de Lemos, com livros oferecidos pela benemérita instituição, o que, naquele tempo, foi motivo de regozijo para muitos jovens leitores, ávidos de descobrir novos autores.
Também eu frequentei esta moderna Biblioteca dos Bombeiros da Régua no meu tempo de adolescente. A partir dos meus treze anos tornou-se um lugar de passagem obrigatória, três ou quatro vezes por mês. A bem dizer, eu estava a iniciar-me nos livros, em novas leituras e autores desconhecidos que iam despertar a minha imaginação para lá das portas do pequeno mundo que, até àquele momento, estava ao meu alcance e me era visível da varanda da biblioteca. Confesso que, não sendo um admirador de ficção científica, procurei naquela biblioteca, por recomendação de um amigo, um livro com o estranho título de Fahrenheit 451, da autoria do escritor americano Ray Bradbury, de 1953. Mal eu sabia que nele ia encontrar, como personagem principal, um bombeiro encarregado não de apagar os incêndios, mas de queimar livros. Sim, aquele bombeiro de nome Montag tinha a missão de queimar LIVROS…! Para mim, estava muito claro que a função dos bombeiros nunca seria essa. Queimar livros, um acto que resume apagar, incinerar o conhecimento, a ilusão, a magia e a memória do Universo. A princípio pensei que o autor se tivesse enganado, mas percebi que, admirador de livros e de bibliotecas, onde até escreveu aquela sua obra, pretendia fazer uma crítica aos regimes totalitários de então, que viam o livro como um perigo e um inimigo, ao mesmo tempo que satirizava o poder da televisão e a alienação que ela exerce sobre a maioria das pessoas.
 Se hoje recordo o livro que fala de uma missão que nunca será a dos Soldados da Paz é porque quero voltar, ainda que fechada ao público, à Biblioteca dos Bombeiros, com tempo para revisitar livros raros que ali se guardam, sempre à espera de novos leitores. Quero também lembrar o nobre exemplo de cidadania dos primeiros bombeiros e o seu contributo para organizar uma biblioteca como a nossa. Eram homens generosos, sensíveis e que apreciavam a cultura como uma forma de valorizar e enriquecer as suas vidas. Eles foram pioneiros numa atitude que, naquele tempo, foi aplaudida e acarinhada também pela sociedade civil. De uma pequena estante de livros fizeram uma biblioteca preservada e mantida pelas gerações vindouras, que estimulou os hábitos de leitura e que cresceu com a oferta de milhares de exemplares de colecções de livros raros. Sem terem lido o romance Fahrenheit 451, que haveria de ser publicado na nossa época como uma obra que pretendia prever o futuro, os primeiros bombeiros da Régua conheciam o valor dos livros e a importância de ter uma biblioteca. Entre outros, tiveram à sua disposição na velha estante autores portugueses e estrangeiros, os clássicos e os contemporâneos, e até aqueles que, sendo naturais da Régua, tinham sido publicados a nível nacional, como Afonso Soares, Bernardino Zagalo e Mário Bernardes Pereira. Para além de obras esquecidas destes nossos conterrâneos, encontrei um livro do poeta ultra-romântico João de Lemos (1819-1890), celebrizado pela poesia “A Lua de Londres”, que começa com estes memoráveis versos:

É noite. O astro saudoso
rompe a custo um plúmbeo céu,
tolda-lhe o rosto formoso
alvacento, húmido véu,
traz perdida a cor de prata,
nas águas não se retrata,
não beija no campo a flor,
não traz cortejo de estrelas,
não fala de amor às belas,
não fala aos homens de amor.

O livro do poeta reguense intitula-se Canções da Tarde e a sua primeira edição saiu na Typografia Portuguesa, de Lisboa, em 1875. Sobre esta obra em concreto não se sabe como a crítica fez a sua recensão, mas é interessante salientar que a poesia deste autor mereceu apreciações literárias positivas, como esta de J. A. Barreiros: “cantou o amor, Deus, a Pátria, sentimentos íntimos, em versos de acento melancólico e de grande emoção lírica. (…) O ritmo musical, em algumas composições, é de excelente efeito e apropriado à declamação”. O poeta ultra-romântico teve fiéis leitores e, apesar de as suas obras não serem actualmente reeditadas, o seu nome está referenciado nos compêndios da história da literatura portuguesa como um dos poetas mais marcantes da segunda geração romântica.
 Costuma dizer-se que “por trás de cada livro há uma pessoa” e por trás daquele exemplar, encadernado numa capa dura, de Canções da Tarde está alguém muito especial, a pessoa a quem pertenceu o livro, uma benfeitora que, depois de o usar, entendeu oferecê-lo à Biblioteca da Real Associação Humanitária dos “Bombeiros Voluntários” do Pezo da Regoa. Essa mulher não quis deixar a sua dádiva no anonimato e, na capa do exemplar, fez questão de a assinalar, escrevendo um “offerece”, a que acrescentou, numa delicada caligrafia em tinta permanente, a sua identificação. Ainda bem que anotou o seu nome, ficamos a conhecer a sua admiração literária pelos versos escritos por um poeta reguense e, porventura, o gosto das senhoras do seu tempo pela poesia. Mas também ficamos a saber que as obras de poesia romântica rechearam a primitiva estante. A senhora que ofereceu um exemplar de Canções da Tarde foi a D. Leonor Cristina Ermida de Magalhães, esposa do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ele que publicou versos românticos nos jornais reguenses.
 A pequena vila da Régua que, há mais de cem anos, aspirava a ser o centro comercial e vinhateiro do Douro, viu surgir, no velho Quartel do Largo da Chafarica (hoje conhecido por Largo dos Aviadores), de uma velha estante de livros a sua primeira biblioteca pública graças ao espírito empreendedor dos bombeiros, de alguns dedicados directores e à ajuda de muitos beneméritos anónimos.
 A criação da Biblioteca Municipal do Peso da Régua não apaga o pioneirismo daquela que hoje persiste hoje como a famosa Biblioteca dos Bombeiros, motivo de orgulho de todos os associados.

José Alfredo Almeida
Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua