sábado, 24 de fevereiro de 2018

No colo dos penedos




    Vivemos, no nosso interior, banhados por mares de pedra em que a água se fez montes. Áridos. De fragas desirmanadas. Penedos que rivalizam em tamanho e forma, gigantescos, uns, associados a lendas de mouras encantadas, lisos e arredondados como ventres de mulher, outros. Amigos de poucos amigos, esconderijos de raposas e de lobos, pousos de aves de pios aterradores. De dia, convidam à escalada. De amantes humanos da natureza. De cabras montesas, ágeis e atrevidas trepadoras de alturas impetuosas.

    Adoçam-se e amaciam-se os penhascos, tomando forma de leito, ao verem aproximar-se quem busca o isolamento, a solidão, quem quer provar a natureza em estado puro, selvagem.
    Esta esbelta menina-mulher, numa descontracção descalça, estende-se displicentemente nesta cama granítica em desafio irreverente à comodidade caseira de colchões de penas. Deita-se para ver mais céu? Para ser benzida pelo sol? Para conhecer o sabor do silêncio? Ou será porque só conhece a palavra paz no seu sentido de antítese de guerra?
    Será esta sua postura habitual ou posará para algum passarinho que anda por perto? Aquela pose...
    Não vale a pena aventar mais hipóteses. Vamos ao encontro de Miguel Torga e de um dos seus poemas intitulados "Regresso", escrito na sua terra trasmontana no Natal de 1951. Pode bem ser idêntica a intenção desta presença inesperada e, decerto, saudada pela palidez baça da pedra reconhecida:   
                                                                              

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Depois o sol abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.

                               Diário VI


M. Hercília Agarez
Vila Real, 24 de Fevereiro

Pontes da Régua-1156

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-337

Foto:josé alfredo almeida

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Eternamente Douro-335

Foto: josé alfredo almeida

Aos deuses

Foto:josé alfredo almeida


O Santuário de Panóias, durante muitos anos denominado Fragas de Panóias. A construção deste recinto sagrado terá sido realizada entre os finais do Séc. II e os inícios do Séc. III. É constituído por um recinto onde se encontram três grandes fragas, entre outras mais pequenas, onde foram talhadas várias cavidades, de diversos tamanhos, bem como escadas de acesso. Numa das rochas foram também gravadas inscrições, três delas em latim e uma em grego, onde se lêem as instruções dos rituais celebrados em Panóias, a identificação dos deuses e a do dedicante. As inscrições podem traduzir-se da seguinte maneira:

"G.C. Calpurnius Rufinus consagrou dentro do templo (templo entendido como recinto sagrado), uma aedes, um santuário, dedicado aos Deuses Severos".

"Aos deuses, G. C. Calpurnius Rufinus, claríssimo, com este (templo) oferece também uma cavidade para se proceder à mistura."

Pode considerar-se que existem, em Panóias, testemunhos de um rito de iniciação dos mistérios das divindades infernais com uma ordem e um itinerário muito precisos - a matança das vítimas, o sacrifício do sangue, a incineração das vítimas, o consumo da carne, a revelação do nome da autoridade máxima dos infernos, e por fim a purificação.

in site  Douro Alliance 

Olhar Mesão Frio

Foto: josé alfredo almeida

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Memórias à solta


Foto:josé alfredo almeida


ao início das tardes soalheiras
levavas-me pela mão
fazíamos o caminho lado a lado
as sombras uma teia
tecendo-nos como os dias
em crescendo
ensinaste-me a arejar uma casa
o sol vinha à janela
rindo a toda a extensão da pele
e as plantas
que me dizias para regar
talvez continuem
a crescer na água dos gestos.



Helder Magalhães.

Eternamente Douro-331

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-330

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 17 de fevereiro de 2018

A beleza da ternura




Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças.

Fernando Pessoa in "Liberdade"


Já andava na escola quando foi mana. O pimpolho que leva, protectoramente, a passear, foi, nesse ano, o seu presente de Natal. Como conhecia as previsões sobre a sua chegada, mais dia, menos dia (falo do tempo em que os bebés não tinham dia, hora, minuto e segundo pré-marcados para abandonarem a quentura do ventre materno), ela nem se deu ao trabalho de escrever a habitual carta ao Menino Jesus.
Que haveria de desejar, farta que estava de ser filha única, apaparicada até à exaustão, tratada como bibelot de cristal? A sua debilidade física suscitava pavores paternais que lhe impingiam cálcio, vitaminas, xaropes para as bichas e para a tosse, fortificantes e, isso era o pior, óleo de fígado de bacalhau.
Tudo engolia, de olhos fechados, sem birras, na expectativa de ganhar corpo firme para encolar irmão ou irmã (na altura também não havia ecografias).
Saiu rapaz, reivindicando roupinhas azuis, berço forrado de azul, tudo azul.
Foi ela que lhe escolheu o nome. Andava, há que tempos, a matutar. Percorria, mentalmente, o chamadouro de primas e primos, amigas e amigos, colegas. Por fim a decisão, afastadas várias hipóteses pirosas, surgiu como clarão de relâmpago: Filipe ou Mafalda, talvez por andar sempre agarrada aos álbuns das peripécias de personagens com estes nomes, criadas pelo cartunista Quino para crianças de todas as idades. Aquela Mafaldinha era levada dos diabos...
O tempo não andou, voou, e os manos aqui estão. Ela quase mulher, muito feminina, e ele muito rapaz. Ele, penteado por ela para o passeio, à força de brilhantina para domesticar a trunfa. Ela, carinhosa, vigilante, irmã-quase-mãe. 
Bonita de se ver esta aliança de sangue: uma mão zeladora e compenetrada abraça o seu "menino de ouro" de sorriso gaiato.
                                                         


M. Hercília Agarez
Vila Real,17 de Fevereiro 

Eternamente Douro-327

Foto:josé alfredo almeida

Manto azul

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Tristeza





Tristeza destas mãos
pesadas de mais
para não abrirem feridas,
demasiado leves
para deixarem marca –


tristeza desta boca
que diz as mesmas
palavras que tu
– significando outras coisas –
este o modo
da mais desesperada
distância.




Antonia Pozzi

Gesso da memória

Foto: josé alfredo almeida


 (...)

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;



(...)


Nuno Júdice

Eternamente Douro-326

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-325

Foto:josé alfredo almeida

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Estar contigo ao acordar




Estar contigo ao acordar, ver como
se abrem as tuas pálpebras, cortinas
corridas sobre o sonho, sacudir dos
teus lábios o silêncio da noite para
que um primeiro riso me traga o dia:
assim, amor, reconheço a vida que
entra contigo pela casa, escancara
janelas e portas, deixa ouvir os pássaros
e o vento fresco da manhã, até que voltas
para junto de mim, e tudo recomeça.


Nuno Júdice

Eternamente Douro-324

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-323

Foto: josé alfredo almeida

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Desencontro





Um amuo trocista de quem acaba de ter, talvez, o primeiro deslize amoroso. Aquela miúda altiva, ciosa dos seus pergaminhos, deve ter-lhe respondido à proposta de namoro com um seco "cresce e aparece". Muito menina do seu nariz, desdenhou-o, sem dó nem piedade.

Avança com sobranceria e leveza, vaporosa nos seus folhos brancos, como se pisasse a passadeira vermelha das estrelas. Será esse, o seu sonho?

Não "passa cartão" àquele catraio de gaforina amarela e franjada. De camisa às riscas parolas. Em atitude meditativa, de quem matuta vingança, vai ele falando com os seus botões - "Não perdes pela demora..."
                               


M. Hercília Agarez, 
Vila Real, 13 Fevereiro de 2018

Não sei!

Foto:josé alfredo almeida



Um homem. 
Uma mulher. 
Um menino. 
Uma familia? 
Nao sei!


antonio gomes lacerda

Eternamente Douro-320

Foto:josé alfredo almeida