domingo, 31 de agosto de 2014

Retratos do Museu

Foto: Arquivo dos BV da Régua

Inesperadamente e quase por desfastio, fui visitar há dias o valioso Museu dos Bombeiros da Régua. Aconteceu no último Agosto e a convite do Dr. José Alfredo Almeida, digno Presidente daquela Corporação. A hora não era muito propícia e a tarde até ia incendiada de calor.
Mas, aceitei o convite e dei por bem empregues os poucos minutos dedicados ao Museu. Se o vi pela rama, mesmo num relance de olhos, também é verdade que me deliciei com tudo quanto pude ver naquele pequeno mas admirável Museu, repositório de tudo quanto se relaciona, ou relacionou, com qualquer corporação de Bombeiros no tocante à sua actividade, seu dinamismo, seu voluntariado. 
Naquele amplo salão, iluminado pela luz de umas vidraças soalheiras, não se pode dizer que o Museu seja rico em demasia. Mas é um Museu a seu modo, rescendente de memórias e evocativas imagens. Não é rico, mas está ali um bom remedeio de curiosidades e velharias, aquelas que no correr dos anos tiveram a sua identidade e a sua prestimosa serventia.
Diante de tais velharias fiquei contemplativo. Contemplei, por exemplo, um carro de mão que seria, nos velhos tempos, um carro de pronto-socorro. Agora é uma peça antiga, um carro anacrónico, de amplo rodado e com dois varais que serão o prolongamento da força braçal de alguns homens, nos caminhos da prontidão. Não são varais de macho a galope, nem sequer à medida de burro tropiqueiro.
O carro tem em cima um depósito de cobre um tanto amolgado e a sua capacidade será de 200 litros de água, se tanto, água que daria para apagar um lume brando e macio e nunca para extinguir um fogo de alterosas labaredas. Mas é uma bela peça carregada de poesia e originalidade no decurso dos anos e agora ali está, muito quieta, ao rés de todo o inventário museológico.
E a sineta que veio de Canelas quando Canelas foi sede de concelho e que ali ficou à guarda e aos cuidados dos bombeiros? Dei-lhe um pequeno toque de badalo, alarme fingido, e a sineta soltou um eco dos tempos idos, ainda assim cheiinho de bronze e sonoridades.
Passam-me então pela retina vários retratos de gente notável. Lá está o retrato de meu bisavô José Braz Fernandes, bisavô pelo sangue materno e que, ao tempo, foi o primeiro Presidente dos nossos bombeiros. 
A fotografia retrata-o como figura já atempada na idade, com barbas tão respeitáveis como patriarcais e com o olhar fixo em alguma distância. É um retrato igual ao original que sempre vi, ano após ano, no recanto mais intimista da minha casa paterna e avoenga.
A minha tia-avó Cândida Braz Amaral também foi benemérita dos bombeiros e também avulta na galeria do Museu, em retrato de meio perfil. Foi uma tia bastante rica, sem filhos, que legou à família o valioso e imponente jazigo mandado construir no cemitério do Peso.
Aproveitei e pedi-lhe licença para, na hora do meu passamento, eu não entrar num gavetão do jazigo, mas descer à mesma campa rasa de meus pais. Já em tempos o deixei escrito nos dois últimos versos do poema a que dei o título “ Quando o além me chamar” : Dizem:

E assim dormir no teu regaço
Para sempre, boa terra, Minha Mãe.

E o retrato do Comandante Carlos Cardoso? Esse veio ao meu encontro como se quisesse dar-me um abraço. Fomos contemporâneos, companheiros e até confidentes de muitas realidades, irmanados na mesma empresa – Hospital -, a desempenhar funções paralelas. Eu, no tratamento de doentes, internados ou não, ele, a prestar contas como chefe da secretaria e a comandar também, com muito aprumo e dignidade, a Corporação dos Bombeiros da Régua.
Digamos que por esse tempo, em caso de catástrofe, o quartel dos bombeiros não mandava tocar os sinos a rebate. Já dispunha de uma moderna sirene que, à conta de um simples botão, mandava por aí fora um som estridente de muitos decibéis. Nos primeiros instantes tudo começava com um arranque poderoso, rombudo até, e logo se aguçava fino e estridente nas pontas de um dramático arrepio, a pontear no céu as linhas de uma tragédia.
Muitas vezes surpreendi o Comandante Carlos Cardoso alvoroçado pelo toque da sirene. Bastava que eu estivesse mais livre de obrigações e ele ocupado no enquadramento da sua secretaria, para que tudo em volta se agitasse num repente e no impulso de uma mola não pasmada. E logo o Comandante Carlos Cardoso corporizava a prontidão. As realidades e o sobressalto das certezas sobrepunham-se aos desígnios de qualquer romantismo.
E deixo para trás a profusão de outras antigualhas: bombas motorizadas, acessórios de fardamentos, lanternas, macas, medalhas, documentos, mercês honoríficas. 
À saída fiz uma vénia a S. Marçal, patrono dos bombeiros. A imagem do santo já tem algumas quebraduras e já tem algumas desfigurações do tempo. S. Marçal costumava ir na procissão do Socorro, em cima de um andor, como quem vai nas andanças de um púlpito. 
Mas, assim velhinho e marcado pelas desfigurações, nem pode mandar-nos de lá uns acenos de santidade.

Peso da Régua, 8 de Setembro de 2013 
Manuel Braz de Magalhães

Visão Alvânica




Visão Alvânica
(Poemas)

Autor: Manuel M. Vaz de Carvalho
Editora: Colibri,2006



Theresa,

Há poemas que consomem uma

vida.
Estes consumiram duas.


Deixo-os nas tuas mãos,

para depois de mim.


Manuel M. Vaz de Carvalho

Luz do Bem

Foto: josé alfredo almeida

 
Este é o belo Salão Nobre - com o nome do benemérito António José Rodrigues, do Quartel dos Bombeiros  Voluntários do Peso da Régua....Onde entra e  sai  esta  Luz do Bem, mais precisa para os piores momentos das nossas vidas....

Espelho da ponte

Foto: josé alfredo almeida

Espelho azul

Foto: josé alfredo almeida

sábado, 30 de agosto de 2014

Fazer um poema

Foto: josé alfredo almeida



Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

Mário Quintana

Estados de alma

Foto: josé aalfredo almeidda

  

Não te rendas, ainda estás a tempo 

De alcançar e começar de novo,
Aceitar as tuas sombras,
Enterrar os teus medos,
Libertar o lastro,
Retomar o voo.

Mario Benedetti

Douro de memórias-2



(Re)Conhecer a Régua-157



Homem da Capa Negra


Foto: josé alfredo almeida

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Museu do Douro-65

Foto: josé alfredo almeida

Percursos de verão


Auto-retrato


Foto: josé alfredo almeida

É por detrás do espelho que me vejo,
Numa espécie de quadro negativo.
Sinais fundos e certos de que vivo,
Mas sem a nitidez que todos me atribuem
Desde o começo.
Baça inquietação, ambígua semelhança
Com aquele velho, jovem ou criança
Que pareço.

Miguel Torga

(Re)Conhecer a Régua-156



Conhecer o sector do Vinho do Porto




Do Corporativismo ao Modelo Interprofissional
- O Instituto do Vinho do Porto e a Evolução do Sector do Vinho do Porto (1933-1995)


Autor: Fernando Aníbal Costa Peixoto
Edição da CTICEM/Afrontamento-Porto, 2012




"Os trabalhos de Fernando Peixoto, especialmente a sua tese de doutoramento que agora se publica, fornecem um inestimável contributo para a história contemporânea do vingo do Porto, cuja importância nacional e internacional é reconhecida, mas que merece ser destacada e depurada de interpretações simplistas ou encomiásticas, com base em trabalhos sérios, solidamente ancorados na vasta documentação existente.
Este legado que o Fernando nos deixou e que representa boa parte da sua vida ficará para sempre, a lembrar-nos o carácter transitório da existência e, simultaneamente, a força da memória Afinal, o investigador, como outro homem qualquer, só sobrevive no que a partilha e transmite de si, como elo dessa cadeia eterna em que se contrabalança a natureza e a cultura. O Fernando sabia disso. Que a vida, tal como a investigação, é, na sua essência, esse gesto de partilha.Na submissão inexorável às regras do tempo. Que a memória só perdura nas criações do passado."

Gaspar Martins Pereira 

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Museu do Douro-29

Foto: josé alfredo almeida

O nosso Marão

Foto: josé alfredo almeida



                                                                                                          Lembrando António Cândido


A serra do Marão assim despida
Erguendo a capelinha num rochedo,
Não oculta a ninguém um só segredo.
Dos Padrões da Teixeira além da Ermida

Conheço certas almas, nesta vida,
Lavadas qual o Marão sem arvoredo,
Onde não há lugarzinho tredo
Nem um ponto que ao crime dê guarida.

O Sol não deixa ali nenhuma sombra.
A neve cobre tudo como alfombra,
Não há vaidade no fragoso chão...

A mentira não sobe àquela fraga,
Que serra, altiva, com ardor a esmaga,
Pois só Águias vivem no Marão!...


Albino de Carvalho in "Flor do Zêzere, de 26/02/1922  

O meu Moledo-64


Foto: josé alfredo almeida



E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder.

Manuel Alegre

DIZ-ME





Diz-me
(Poesia)

Autor: Horácio J.S. Lopes
Editora: Nova Ática, 2003


Pai

Era,
no princípio
a tua única Palavra.
E ficou, 
assim
dita
para sempre!...


Horácio S. J. Lopes
(Nasceu no Peso da Régua em 1967. Licenciou-se em Medicina Dentária em 1991)

(Re)Conhecer a Régua-155




quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Dá-me lume

Foto:josé alfredo almeida


Todos sabemos acender um fósforo
a quem nos pede lume.

Talvez fosse uma conversa
possível até ao fim. Mas o mais vulgar
é ficarmos onde estamos
com o fósforo aceso à beira do rosto

— e antes de haver tempo
a chama queima os dedos.


Carlos Poças Falcão

Janela do Douro

Foto: josé alfredo almeida

Apaixonei-me logo por este rectângulo
onde fulgura um horizonte dourado,
cruamente medido pela rotina de rebanhos
ovinos, caprinos ou humanos – semelhantes
no destino, mas desiguais no esplendor.

Ao lado, entre a ruína de dois moinhos,
pessoas vivem ou morrem
dos seus ordeiros rebanhos, da música
que emoldura tardes felizmente iguais,
debaixo de um sol inclemente.

Esta janela, afinal, não precisa de comparações.
Durará enquanto houver silêncio.

Manuel de Freitas

Retrato da minha manhã

Foto: josé alfredo almeida


Um dia hás-de falar sem dizer nada
que o mundo compreenda e será teu
esse primeiro azul da madrugada.

Fernando Pinto do Amaral

Os livros de João de Araújo Correia-30




Dispensário Linguístico
(Antologia)

Autor: João de Araújo Correia
Editora: Imprensa do Douro- Régua,1999


"O escritor João de Araújo Correia,(...) também se preocupou muito com a língua portuguesa. Não só no aperfeiçoamento exaustivo dos textos de ficção e crónica mas, também, na recolha de vocábulos e, ainda, na defesa pública da fala e da escrita. Na sua tábua bibliográfica assinalam-se: Linguagem Médica Popular Usada no Alto Douro (1936); Por Amor da Nossa Fala - Notas sobre Pronúncia (1952); Enfermaria do Idioma (1971).
Estes livros foram antologiados por Fernando de Araújo Lima em A Língua Portuguesa (edições Verbo, com o patrocínio da Secretaria de Estado da Cultura). É dedicado à memória de Aquilino Ribeiro e inclui a seguinte epígrafe de José Leite de Vasconcelos: "A língua é um dos elementos da nacionalidade: pugnar pela vernaculidade daquela é pugnar pela autonomia desta."
Que recomenda João de Araújo Correia? Alguns exemplos: "Respeitem-se os dialectos, mas não se consinta que nenhum deles se árvore em mentor dos outros. Língua é língua, dialecto é dialecto. (...) O lar do idioma português é Portugal. Nele deverá arder sempre a sagrada fogueira da pronúncia branca." "Pronúncia é poesia. Cada palavra pronunciada é uma rosa singela. Perderia a graça, perderia a inocência, se trouxesse presa, numa etiqueta de zinco, a história da família." "Se és português, não aprendas português com os filólogos."
Apesar disto, seguiu a doutrinação implacável dos filólogos do fim do século XIX e começo do século XX, com a obstinação de corrigir o que classificava erros e vícios da linguagem. Insurgiu-se por vezes com razão e autoridade, mas noutras circunstâncias emitiu opiniões que, no mínimo, julgamos absurdas.
Será melhor citá-lo: "Cobre a cara com uma serapilheira se disseres face a isso. Deves dizer em vista disso." "Telejornal e telespectador fora dos serviços televisivos são patetismos inúteis. Basta dizer jornal e espectador." "Se houvesse língua portuguesa, não haveria Partido Social-Democrata. Poderia haver Partido Social Democrático."
O exacerbado purismo de João de Araújo Correia transforma-o num cavaleiro do Apocalipse: "O idioma está condenado à morte. Perde, de hora a hora, o carácter, o vigor, a graça, a poesia." "O português dos nossos filhos não será português. Será uma burunganga."
Tão assanhado fundamentalismo seria impensável se não transcrevêssemos, na íntegra, estas insólitas afirmações. Cada qual faça os comentários que entender. E sem cobrir a cara com uma serapilheira..."


António Valdemar in Diário de Notícias de 28/03/1999

(Re)Conhecer a Régua-154



Anúncios do comércio reguense-2



´                           Publicado na revista "Turismo"(Lisboa),de Outubro de 1938
                         
                           (Diga como curiosidade que, ao tempo, era a única pensão recomendada para a vila Régua, sendo que a diária mínima era de 20$00 e a máxima era de 25$00)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Concerto Musical



Tellus Mater


Foto: josé alfredo almeida




   S. Martinho de Anta, 8 de Setembro de 1992- Mesmo a cair aos bocados, temei passar por aqui. É que nenhuma hora da minha vida tem significado sem esta referência. S. Martinho é um marco de orientação e segurança que vejo em todas as horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo.

   Miguel Torga 

Temas Torguianos




Dois Homens num só Rosto
Temas Torguianos

Autora: M. Hercília Agarez 

Editora: Lema d`Origem, 2013


"O presente livro resulta do desenvolvimento de textos publicados (...) num jornal local aos quais acrescentámos três inéditos. Destinados ao leitor comum,mantêm, pelo mesmo motivo, clareza de linguagem e simplicidade de estilo. Pretendemos levá-lo a uma mais justa e correcta apreciação de um autor que de si próprio disse, dois anos antes de partir:

Nunca serei compreendido. Todos me censuram a única verdade que realmente tenho: ser idêntico a mim próprio desde que nasci. Diferente dos mais, não por presunção, mas condição."

M. Hercília Agarez 

Modos de ver

Foto: josé alfredo almeida



Podem pedir-me, em vão,
Poemas sociais,
Amor de irmão pra irmão
E outras coisas mais:

Falo de mim — só falo
Daquilo que conheço.
O resto… calo
E esqueço

António Manuel Couto Viana

O meu Moledo-63

Foto: Malomil 


         No apogeu do termalismo, era assim o famoso Hotel das Caldas do Moledo...
     Para recuperar estas termas e este importante património do estado de degradação e abandono precisamos, outra vez, do génio empreendedor de alguém que imite a visionária reguense D.Antónia, a Ferreirinha.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um longo olhar


Foto: josé  alfredo almeida



 A Régua, numa vista geral do alto de Sergude, muito ao longe, com a silhueta do seu casario, do rio, junto ao cais,  e das linhas ponte nova, ontem às 20.00 horas iluminada pelo o sol do fim da tarde que caía  devagar no horizonte, realçando estes montes pintados...pela  mãe natureza, como se  a vida fosse o melhor poema: 


Para um amigo tenho sempre um relógio 
esquecido em qualquer fundo de algibeira. 
Mas esse relógio não marca o tempo inútil. 
São restos de tabaco e de ternura rápida. 
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. 
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol. 

António Ramos Rosa

Ler João de Araújo Correia-39




                         João de Araújo Correia in "Pátria Pequena"

Subir o Douro

Foto: josé alfredo almeida

Passar a barragem

Foto: josé alfredo almeida

domingo, 24 de agosto de 2014

Fogo do verão

Foto: josé alfredo almeida



 A boca,
 onde o fogo 
 de um verão
 muito antigo cintila,
 a boca espera
 (que pode uma boca esperar senão outra boca?) 
 espera o ardor do vento
 para ser ave e cantar.

 Levar-te à boca,
 beber a água mais funda do teu ser
 se a luz é tanta,
 como se pode morrer?

 Eugénio de Andrade

Terra

Foto: josé alfredo almeida



 No meus lábios, melhor: no fogo,

 talvez no pão, talvez na água,

 para lá dos suplícios e do medo,

 tu continuas: matinalmente.


 Eugénio de Andrade

Douro de memórias



Também eu...

Foto: josé alfredo almeida


Covas do Douro, 11 de Setembro de 1981 - Diferentes em tudo, até no ofício, um ao serviço de Deus e outro ao serviço dos homens, nunca o julguei capaz de semelhante comunhão. Vinha a seu lado num deslumbramento mudo, docemente embalado no carro, que parecia um pião tonto a rodopiar pelas encostas enjeiradas reflectidas no espelho sinuoso do rio. Mas ás tantas não resisti. Num ímpeto de confissão, murmurei:
- Só tenho pena de morrer por causa desta paisagem...
E ele, como num eco:
- Também eu...

Miguel Torga  

Tardes poema

Foto: josé alfredo almeida




Andei trinta e dois anos a passear os versos
E a determinada altura deixei de esperar e de escrever.
Estavas tão bonita
Que me esqueci.




Paulo Campos dos Reis

Cúmplices do sol

Foto: josé alfredo almeida

 Atravessamos o calor
 pelos lugares felizes,
 corpos cúmplices do sol,
 mergulhamos nos sorrisos
 sem portas, sem paredes,
 os dedos lentamente
 adivinham os desejos

Constança Lucas

sábado, 23 de agosto de 2014

Peugadas das tardes de verão

Foto: josé alfredo almeida

Se for preciso, irei buscar um sol
para falar de nós:
ao ponto mais longínquo
do verso mais remoto que te fiz

Devagar, meu amor, se for preciso,
cobrirei este chão
de estrelas mais brilhantes
que a mais constelação,
para que as mãos depois sejam tão
brandas
como as desta tarde

Na memória mais funda guardarei
em pequenas gavetas
palavras e olhares, se for preciso:
tão minúsculos centros
de cheiros e sabores

Só não trarei o resto
da ternura em resto desta tarde,
que nem nos foi preciso:
no fundo do amor, tenho-a comigo:
quando a quiseres.

Ana Luísa Amaral


Manual de recordações-2


Foto: josé alfredo almeida

Manual de recordações

Foto: josé alfredo almeida



As recordações começam ao cair da tarde
com o hálito do vento a erguer o rosto
e a escutar a voz do rio. A água
é a mesma, na escuridão, dos anos mortos.

Cesare Pavese


A primeira vez

Foto: josé alfredo almeida



Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolaram-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infãncia, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.

Isabel de Sá

Tardes douradas

Foto: josé alfredo almeida


         eu só dizia:
         foge comigo
         desce também o rio
         escuro salgueiro

        José Tolentino Mendonça

(Re)Conhecer a Régua-153




Os meus livros-2







Aldeia das águias

Autor: Guedes de Amorim
Editora: Minerva,1973 


"Há, nesse romance, um alfaiate que é uma santidade, ou melhor dizendo, um achado de ternura que faria crescer água na boca a Raul Brandão. O alfaiate, que fazia bonecos de pano para as criancinhas, vai ao cemitério levar o mais bem feito a um surdo-mudinho, que lhe sorrira em vida como nenhum outro menino (...). Guedes de Amorim, filho de Raul Brandão no amor a uma alma pura, mirrada por incompreensões e injustiças até se reduzir a um graveto de alma, pode extrair do romance o conto do alfaiate, que é uma obra-prima. Outro primor, dado no mesmo romance, é a descrição da matança das águias que moravam na Fraga da Ermida. As peripécias da montaria levam-me à Idade Média por mão de Fernão Lopes." 


João de Araújo Correia in Pontos Finais, Régua, Imprensa do Douro, 1975.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Última vontade

Foto: josé alfredo almeida


Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.


Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?

Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.


Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:


Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.


Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.

Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?


Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.


Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.


Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

M. Nogueira Borges

Museu do Douro-28


Foto: josé alfredo almeida