sábado, 25 de janeiro de 2014

Etnografia duriense - as nossas comidas




"Naquele tempo, que foi o meu tempo, os pobres do Alto Douro, que davam o dia a trabalhar, de sol a sol, eram mal alimentados. Mas, tinham mais saúde do que hoje. Bebiam muito menos vinho e muito menos cerveja. Não criavam barriga.
Os pobres, em geral, comiam caldo de couves, mitigado com algum feijão, e, no tempo das abóboras, caldo de abóbora, batata e cebola. Comiam broa, sardinha e, em certas ocasiões, de lide mais solene, uma pequena posta ou uma boa posta de bacalhau.
Passadio de jornaleiro, variava de lavrador para lavrador.Se o patrão era avarento, chegava a ser desumano. Chorava o sustento de quem o sustentava. Mas, se era boa pessoa, homem caritativo, não mataria à fome o assalariado.
Melhor trato, na vinha era o do enxertador, e, no armazém, o do tanoeiro. Estes especialistas comiam como lavradores. Comiam carne. Comiam o que houvesse de melhor. Tinham trato - como se dizia. Trato de excelência...
Falta dizer, a respeito dos pobres, que era seu costume, nas manhãs geladas, matar o bicho. Iam à venda, como se fossem a uma capela, e aí bebiam, e escorripichavam, um grucho de aguardente. Apresigavam-no, em geral, com dois figos secos.
Tente-se agora esboçar o que foi a culinária de ricos e remediados.A culinária e a confeitaria...Foram ambas saborosas, mas, pouco variadas.
Mal diferia a ementa dos ricos da ementa dos remediados.Com algumas excepções, casas de boa mesa, todos comiam o mesmo e, quase sempre, o mesmo.
Lavrador afidalgado, se o houvesse, quebrava o jejum com chícaras de chá preto, biscoitos duros de Lamego e alguma torrada. Mas, se almoçasse de garfo, mais à lavradora, comia-lhe uma boa posta de bacalhau, uma sardinha de cabeça ou uma linguiça, no tempo do fumeiro.E acompanhava estes pitéus com boa batata e o competente copo de vinho tinto.
Ao meio-dia, era o jantar, principal refeição do lavrador. Começava pela sopa, quase sempre de couves e carneiro. O carneiro, que, naquele tempo, no Douro, era uma delícia. Já lá vai esse tempo.
Seguia-se à sopa o arroz e o cozido, quase sempre acompanhado de carne da salgadeira ou algum enchido - moira ou salpicão.
No fim, sobremesa, que pouco variava. Fruta do tempo, boa maçã ou boa pêra e, se fosse inverno, fruta seca.Doce, quase sempre cavacas de Resende, marmelada ou calondro cristalizado.Em dias de festa, Natal, por exemplo, não faltava a letria, as fritas de jerimu e as rabanadas. E lá se bebia, sobre tantos doces, cális ou meio cális de vinho fino, finíssimo.
No tempo das matanças, o jantar do lavrador era rico de boa carne de reco - boas assaduras. Lombo, costelas e torresmos competiam em sabor divino. Mas, esse sabor desapareceu. A carne de porco é hoje inodora, incolor e insípida.Não se distingue da água destilada.
À noite, ceava o lavrador batatas cozidas com bacalhau, pescada ou sardinha.E, no fim, caldo verde, caldo de cebola ou caldo de abóbora, temperados com azeite.Sobremesa, de grilo...
No tempo das castanhas, delas se fartava, a horas de ceia, o lavrador.Vinham para a mesa no panelo de barro, onde tinham cozido. E daí se comiam.
À parte o bom gosto, e o bom sustento, muito as apreciava o lavrador, sempre de olho fito à economia. No tempo das castanhas; à ceia, não comia batatas.. Forrava-as, que se consolava.
Entrava às vezes, à mesa do lavrador, o bom feijão, a feijoca meio amanteigada e o rico ervanço. Favas, temperadas com salpicão da caluga, e ervilhas, avivadas com cibos de presunto entremeado, assim fosse primavera, não faltavam.
Diga-se uma palavra, não esqueça, do sarrabulho doce, que já ninguém sabe fazer. Só sei que lhe entrava, na composição, à parte o sangue ralado, um pouco de pingue, mel, açucar e amêndoa.
Tão substancioso doce, talvez do tempo dos frades, é natural que tenha falecido. Na época da temperança, pregada por médicos e leigos, seria excomungado como homicida.
Esta excomunhão será ou não lamentável. Certo é que foi do paladar duriense o sarrabulho doce. Haverá ainda quem o recorde?
Fugiu, da culinária duriense, uma trindade de bons pescados do rio Douro. Já ninguém sabe o que foi sável, enguia e lampreia. Matou essas espécies a construção de barragens.
Dê-se também aqui uma palavra saudosa a frutos durienses que desapareceram.Alguém se lembra do malápio do Douro? E a pêra-joaquina duriense? Ninguém se lembra. Esses frutos, que foram do paraíso, fugiram escorraçados por variedades estrangeiras.
Ainda há uvas. Mas que é feito do bastardo? Que é feito da malvasia fina? Morreram sem que ninguém lhe reze, por alma, um padre-nosso.
Se não fossem os moscatéis, que ainda os há, já não haveria, no Douro, uvas de sobremesa.
Não faltam, para fazer vinho, uvas aguanentas. De tais uvas, até o deus Baco arrenega.

João de Araújo Correia

1 comentário:

  1. Pois, pois. não era só em Angola, como então dizia Agostinh Neto, que aos assalariados se dava peixe "podre", fuba "podre" e panos ruinsde 50 angolares!... Os assalariados do Douro também trabalhavam quase de sol-a-sol, comiam uma tigela de caldo ou de massa e uma sardinha e eram pagos a pataco. No Continente, por esses malfadados tempos, também havia Escravatura!...

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