terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Que rico colinho!





Lá se foram os caracóis, marca de uma identidade no feminino, moldura bela de infantis rostos mimosos! Tesouras atrevidas  e sem coração avançaram, afiadas, pela tua cabeça de garotinha que a mamã levou ao seu coiffeur. Para o caixote do lixo seguiram os restos da tua idade de brincar.
Agora, de cabelo à garçonne, com esse gancho adulto a domesticar as farripas rebeldes, pareces (não fora a tua roupa) as meninas órfãs ou abandonadas de que asilos eram depósito. Deixa lá! Os anéis desapareceram, mas não levaram com eles a tua beleza fresca.
Pareces feliz. As bonecas e demais brinquedos, no seu estatismo frio e mudo  esperam, em casa, por ti.
Tiveste ordem de sair para o quintal, jardim das delícias de todas as crianças pelo que encerram de apelos à aventura, a saltos e correrias sem reprimenda.
Agora os teus filhos não são de bazar. Ofereces o teu colinho e os teus carinhos a dois gatos, quase do teu tamanho, que se apequenam para nele caberem, sem bulhas nem bufadelas. E se, sentindo-se em dívida, te lamberem a mão, lembra-te que a gatice não conhece outra forma de beijar...




M. Hercília Agarez
Vila Real, 30 de Janeiro

Eternamente Douro-296

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-295

Foto:josé alfredo almeida

Santa Maria de Cárquere-2

Foto:josé alfredo almeida 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Depois de tudo






Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo, 
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu, 
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam 
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir, 
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer




Nuno Júdice

Palácio

Foto:josé alfredo almeida

Santa Maria de Cárquere

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-294

Foto:josé alfredo ameida

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Transborda a paisagem

Foto:josé alfredo almeida


Manchas de tarde
na água. E um vôo branco
transborda a paisagem.



Yeda Prates Bernis

Ver pouco

Foto: josé alfredo almeida


"Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente, por isso pouco sentiam. De aí a sua perfeita execução da obra de arte."


Fernando Pessoa

Eternamente Douro-289

Foto:josé alfredo almeida

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Posto de vigia

Foto: josé alfredo almeida
                 
É o coração que sente Deus, e não a razão.

Pascal



Saberia quem te plantou ai, assim despojada, assim modesta, assim isolada, quantos visitantes contabilizas, ano após ano?Mas não te envaideças. Sem mérito arquitectónico, fechada a mais de sete chaves, as tuas frinchas deixam entrar tiras de luz, convidam a espreitadelas curiosas. Inútil, a varanda, que o Santo não tem intenção de frequentar. Prefere o posto que lhe foi, estrategicamente, destinado. 
Salva-te do abandono, do esquecimento, nesse ermo-mirante, a surpresa que oferece a tua parede mais ditosa. O teu padroeiro, São Leonardo, anfitrião atento e vigia eficiente, inspirou a Miguel Torga um dos seus mais belos poemas, gravado num painel de azulejos. Ninguém resiste a lê-lo, com recolhimento de oração. Diz o autor, no Diário IX, que lhe custou "trinta anos, bem medidos, de tenacidade".
Tem boas vistas, o bom do santo. E todo o tempo do mundo para se embasbacar com esse naco do "Doiro sublimado", desse "excesso da natureza", desse "poema geológico".
No Diário III escreve o "Orfeu Rebelde":
"[... ] Que força me atrai [...] a estas capelinhas onde mora um Deus em que não acredito?" Perdeu-O na adolescência, passou a vida a negar a sua existência, mas nunca teve "a força de O esquecer". Vejamos:

                     S. Martinho de Anta, 15 de Abril de 1979 - Ser incréu custa muito! É dia de Páscoa. O gosto que eu teria de beijar também o Senhor, se acreditasse! Assim, olho a fé de todos em aleluia, e fico nesta tristeza agnóstica que faz da vida um agónica aventura sem esperança de ressurreição.
Diário XIII


M. Hercília Agarez
Vila Real, 24 de Janeiro

Mirar o rio

Foto: josé alffredo almeida

Eternamente Douro-287

Foto:josé alfredo almeida

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O inverno do nosso descontentamento*

Foto:josé alfredo almeida


Tristeza de Inverno. Árvores espelham saudades das folhas, sua roupa aconchegante. Feitas lixo, feitas cinza. Saudades da passarada que lhes faz serenatas diurnas, de seus galhos fazendo poleiro.

Céu e rio rivalizam em opacidade e melancolia. Cinzentos de aliviar luto. Águas fluem por obrigação, por destino. Maceração.

O barco não fugiu. Não receou a força arrastadora da corrente. Fiel, resignado, aguarda seu dono entre ventos e marés. Abriga o vazio. Cala memórias e aventuras passadas. Anseia vir a ser, de novo, berço deslizante por remos embalado.

Janeiro triste  torna mais tristes os tristes.
  
* Título de romance de John Steinbeck


M. Hercília Agarez
Vila Real, 22 de Janeiro                        

Sol de inverno




Foto: josé alfredo almeida 

Eternamente Douro-284

Foto:josé alfredo almeida

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Escritor do Douro em pessoa





"Quando, nos meus tempos de exílio, me davam saudades do longínquo Douro - o Doiro, como se dizia no Vilarouco -, punha-me a reler, para as matar, um naco de prosa de um dos escritores que a ele se mantiveram mais apegados, mergulhando as raízes no terrunho e no rio de nascença, como as cepas a crescer para o fundo e para o alto, de socalco em socalco, desde o rés das margens até ao céu e deste até ao âmago do coração dos homens: falo de João de Araújo Correia, que se quis fiel até a morte a casa matriz telúrica que é a de todos nós, durienses e transmontanos.
Nunca o conheci senão através da escrita - a escrita tersa e enxuta dos seus contos como das suas crónicas, que desde a juventude me habituei a saborear, e mais tarde a das cartas ou postais, por vezes de sóbria delicadeza íntima, como que me brindou, no meu regresso à pátria.
(...)
Os seus curtos textos me bastavam, porém, para ir compondo, a pouco e pouco, uma figuração da persona desse autor de obras breves - pois não fez ele o "elogio do livro pequeno", mesmo se o tratava por "sua excelência o livro"? - que conseguia condensar nas suas frases de húmus macerado todo o perfume de um bom vinho fino, dado a beber ao leitor em lentos goles. Raros como ele sabiam com uma tal arte da concisão arrotear, num "trabalho de cava", as palavras da língua portugues, a cuja defesa e ilustração consageou muito do seu labor amoroso. "Sei que nasci escritor em casa de lavoura, situada à beira de uma fonte, na antiga vila de Canelas" - eis como João de Araújo Correia se apresenta, numa quase lacónica  nota autobiográfica que nos deixou. Quem assim seria capaz de literariamente se micro-retratar?

Desde os títulos de cada volume modesto, que lá ia dando a lume, aos de cada uma das peças buriladas, pode ler-se a identificação como a "patria pequena" do Douro, que era tudo o seu universo, em sentido próprio. "Parece-me que foi sofre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos"- diz ele ao falar de uma das suas colectâneas.
A metáfora mineral ajusta-se perfeitamente à matéria e à forma de que é tecida a ficcção de João de Araújo Correia, assim como os seus artigos jornalísticos e as suas conferências, de tom menor mas sempre de talhe primoroso.

A consciência da escrita como fazer poético é uma obsessão do autor de Contos Bárbaros. Veja-se o conto "O escritor", em que a condição dura deste é concebida como um "fado" - um fatum trágico, à letra - a que não pode eximir-se. Mas ela é para ele outrosssim o exercício permanente de uma liberdade criadora, que faz apelo a um sacrifício, superior ao de qualquer trabalho penoso. "Dizem alguns que britar pedra muma estrada, à torreira do sol, é uma brincadeira comparada com o esforço de escrever com arte" - congemina o protagonista do conto "Só".
(...)

José Augusto Seabra in jornal "Primeiro de Janeiro" de 1 de Dezembro de 2000

Pontes da Régua-1153

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-279

Foto:josé alfredo lmeida

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Auto-Retrato

  Miguel Torga: comemora-se hoje mais um aniversário da sua morte, ocorrida em 1995




"Desta terra sou feito".
Em cima dumas fragas
Me pariu Diana.
Quem a fecundou?
Orfeu
Ou Prometeu?
Não sei.
Poeta sou
E caçador.
Do céu roubei
A Zeus
O fogo da criação.





M. Hercília Agarez 
in Miguel Torga A Força das Raízes (ensaio), Papiro Editora, 2007

Último pescador

Foto: josé alfredo almeida

Eternamente Douro-278

Foto:josé alfredo almeida

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O Inverno da vinha

Foto:josé alfredo almeida


Cepas em quase cruz. Tiritantes, mas firmes. Negras como os esteios, amparos dos seus anos, da sua velhice. Em compasso de espera. Pela frialdade que lhes chega às entranhas, adivinham a chegada dos trabalhadores, das suas mãos sábias, credenciadas por longa experiência nas delicadas tarefas da poda e da empa.

A tesoura não repousa. É sua eterna companheira, tão indispensável como em missa sacristão. Dela cairão em chãos invernosos varas inúteis, desordenadas. Inúteis nas videiras, úteis quando, em molhos feitas, substituem as acendalhas em lareiras rurais.

A empa (ou erguida) leva-me a Miguel Torga e a um dos poemas "Bucólica" em que enumera, entre nadas de que é feita a vida, um gesto do seu velho: "Meu pai a erguer uma videira / Como quem faz a trança à filha".

E eu, reduzida à minha insignificância perante o mestre, digo:
                                                               


Dedos encarquilhados
                                      erguem videiras:
                                      lavores no masculino.

                                               in As Asas da Libelinha



M. Hercília Agarez
Vila Real, 16 de Janeiro de 2018

Faz-se tarde

Foto:josé alfredo almeida



faz-se tarde 
e eu deixei de esperar-te.






José Agostinho Baptista

Como uma árvore

Foto:josé alfredo almrida





Nunca tive os olhos tão claros e o sorriso em tanta loucura. 
Sinto-me toda igual às árvores: solítária, perfeita e pura



Cecília Meireles