"Esta quadra de fim de ano é, para mim, propícia como nenhuma a evocações. Que fará daqui por vinte anos! Mas seja: apetece-me recordar.
Lá para os meus lados não se cantavam as janeiras: cantavam-se os reis. Em boa verdade, não vejo diferença substancial entre um e outro cantar; tão-pouco, vejo grandes diferenças circunstanciais. Mas sobre isso que se pronunciem os etnógrafos. O que eu sei é que se começava logo após o Natal e leva-se de afeito ( modo de por lá se dizer ininterruptamente) até aos Reis, com a mira, cada noite, na remuneração precária: uma chouriça, meia-dúzia de nozes, figos ou castanhas, algum mimo da quadra, moeda de alpaca. Os grupos formavam-se ad hoc, mas não raro se mantinham de ano para ano, fosse porque o casar das vozes tivesse aprovado, fosse por se ter gerado uma qualquer afinidade.
Muitas vezes cantei os reis, na vila da minha infância, mancomunado à revelia dos pais com um grupo de garotos dos bairros pobres, compinchas de sempre e de tudo. Escapulia-me de casa após o jantar, reunia-me aos tunantes e regressava por essas dez, onze horas, resignado de ir encontrar, certinho, o chinelo alçado de minha mãe para o ajuste de contas. Mas quê! Era mais forte do que eu esse apelo da rusga que, noite álgida e cerrada, por quelhos e alamedas, parava a cada porta de "gente honrada" e rompia à uma na cantata: "Venham copos de cristal,/Cheios de bom vinho fino,/Que esta noite é de festa,/Já nasceu o Deus menino!"
Após uma pausa para a gente da casa rejeitar, querendo, o canto, atacávamos o "Quem diremos nós que viva", citando hierárquica e meticulosamente todos os que ali viviam, incluindo a criadagem, se a houvesse. A minha quadra preferida, decerto por um pendor poético que logrei conservar vida fora, era a dedicada à matriarca: "Viva a dona desta casa,/ Raminho de salsa-crua;/Quando saia para a igreja,/Alumia toda a rua!" Há aqui poesia de lei.
Corrido todo o pessoal a semelhantes gabanços, aguardava-se o tempo que era de razão para que viesse alguém dar os reis. Se tardava, umas pancadas insistentes na porta sublinhavam a nossa impaciência. E se não vinha de todo, desfeitas ilusões, em desagravo e de pé e olho alerta para a prudente debandada, ali descantávamos os reis "Não têm nada que nos dar;/Só têm uma arquinha velha,/Onde os ratos vão..."(Com as pudibundas reticências encubro pobremente a desfeita escatológica que os ratos presumivelmente praticavam na arca dos unhas-de-fome.)
Que noites essas de Janeiro entrado! Lembro-me de uma feita de luar e gelo, em que o meu rancho ( três pequenos patifes, sem contar comigo) teve artes de me persuadir a aceitar uns reis que não esquecerei, levando-me das mãos comovidas e gratas o quinhão que me coubera no rateio do fim da ronda: três moedas de dez tostões. Meus malucos oito anos! Jamais em noite de reis enfrentei o chinelo materno com as algibeiras tão vazias e com a alma tão cheia."
A. M. Pires Cabral in O Transmontano, nº23, de 31 de Dezembro de 1981

Sem comentários:
Enviar um comentário