segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O que já fomos

Desenho de Margarida Almeida



Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começámos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo,
tu és ainda o meu relógio de vento,
a minha máquina aceleradora de sangue,
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti

o nocturno passeio do gato no telhado?



Isabel Meyrelles

Eternamente Douro-799

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 29 de dezembro de 2018

Eternamente Douro-795

Foto:josé alfredo almeida



"É nessa altura que, ao ver as lágrimas felizes da chuva a caírem lentamente do ramo onde a Primavera fará crescer ramos, folhas, gavinhas, cachos, é nessa altura que nós próprios, abrigando-nos ainda da chuva e do frio, queremos que o tempo se apresse, o sol se mova no céu, os pássaros cheguem de longe, e a vinha se cubra com o verde da vida."


Paulo Varela Gomes

Eternamente Douro-794

Foto:josé alfredo salmeida

Simplicidade

Foto: josé alfredo almeida

Naturalidade

Foto:josé alfredo almeida

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O xadrez e a vida





      Ao Zé Alfredo, meu companheiro de tantos jogos
     


       Não sei qual foi o instante preciso em que um de nós, pela derradeira vez, afagou em desespero a rainha e lançou obliquamente o rei até ao solo. Terão passado quase trinta anos sobre esse fechar das gelosias da adolescência. A casa desamparada na memória, às escuras e à espera. Esse momento em que cada um de nós partiu impante na sua armadura, cavalgando a descoberta e a tomada do mundo (o cavalo sempre foi a minha peça predileta do jogo de xadrez).
       Não terá sido este jogo a ensinar-nos que impante é também aquele “que soluça convulsivamente”. Talvez a lição tenha provindo de outras latitudes. Talvez seja a vida, afinal, que no-lo ensine, mas nós nos mantenhamos, por muito tempo, numa espécie de contentamento inconsciente, como sussurraria um poeta. Recusando aprender.
       Não éramos mais do que duplos de Dom Quixote, lutando com adversários sem contornos nem feições ou formas que pudéssemos ferir ou aniquilar. A seguir, tu partias para uma cidade à beira do Mondego, traindo temporariamente o rio da tua infância, eu limitava-me a acompanhá-lo curso abaixo até onde o destino me depositou como peça inerte de um outro tabuleiro, o da existência.
       Quase trinta anos mais tarde! E é como se o peso das realidades que a nossa vida arrecadou, durante esse intervalo, se tornasse insignificante ao relembrar o momento em que, delicadamente (assim o éramos), um de nós, com toda a solenidade, terá aceitado que a vitória lhe escapava. Lembro-me de teres dito um dia, não sei já quando, porque nem pressinto se é verdade ou se não passa de ficção a intrometer-se num texto, que era a mim que cabia a visão mais ampla, o olhar com mais astúcia. Disseste-o como quem, a pretexto do xadrez, parecesse querer antecipar os lances de êxito da vida. Concedi, a troco de pensar que havia muito mais triunfo na tua labareda de futuro…
       E avançávamos pelas casas do tabuleiro, que queríamos coloridas pelo sol irradiado nas águas do nosso rio. Tantas majestosas guerras em que a vida copiou o xadrez, tantos séculos se desenrolaram, e talvez só agora entendamos que existir pode ser a preto e branco, como as casas alternadas que um inventor imaginou. Como poderiam essas casas, de gelosias também elas cerradas, inundar-se de outras cores? Como, mesmo aceitando que o número de movimentos possíveis no xadrez supere o número de estrelas no universo? Como, se mesmo assim, com tantos lances ao dispor da mão, haverá sempre, ou quase sempre, um conquistador e um derrotado? Já não sei se dizemos xadrez, se dizemos vida…
       Acredito que na nossa biografia nos servimos de todas as peças. Teremos sido peões muitas vezes, aceitando a submissão a um poder superior. Confiámos nos bispos e na sua fé redentora, eles que se movem, contraditoriamente, de modo diagonal e tão furtivo no tabuleiro. Construímos em determinadas ocasiões torres alçadas ao céu, fortalezas que ninguém conseguia desmontar e que soçobravam, de repente, sozinhas. Tivemos rainhas nas mãos, sem reconhecer que nada é duradouro e que essa posse deve ser acariciada com fervor. Encarnámos tantas vezes, mormente no desencanto, aquele rei que abdicou por não aguentar sofrer. Incrível como a vida se assemelha, na sua tremenda realidade, à guerra que se trava no tabuleiro…
       Superávamos tardes inteiras debruçados sobre o jogo, como se não houvesse amanhã. Era uma batalha num espaço cósmico, testemunhada também pelos nossos amigos, que emudeciam em agonia. Uma contenda que nos fazia pairar acima do tempo. Cada um de nós procurava o lance decisivo, a honra do estertor inimigo, o olhar compassivo de quem se adivinha, dessa vez, o vencedor.
       Cada um de nós buscava a vida diante do risco da derrota.


24 de dezembro de 2018 
Jorge Pinho

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Feliz Natal

Foto:josé alfredo almeida


 "A noite de Natal festejava-se à mesa, comendo o bacalhau, a couve troncha e as rabanadas. Depois de ceia, afogada em vinho grosso e vinho fino, toca para a cozinha… Diante do lume aceso, conversavam os novos, pasmavam os velhos e jogavam o rapa as criancinhas. Jogavam-no a pinhões ou a confeitos, consoante a humildade ou a soberba dos pais."



João de Araújo Correia

Olhar de Outono-73

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-789

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-788

Foto:josé alfredo almeida

sábado, 22 de dezembro de 2018

Parras de Natal

Foto:josé alfredo aslmeida



    Gambiarras de folhas verdes, amarelas, encarnadas. De nuances plurais. Presas por fios invisíveis, brilham luz.

    Aqui estão, a partilhar connosco, outoniças e quase inverniças, o espírito de Natal, expressão tão gasta como fundilhos de pobres. Embora filhas de cepas várias, reuniram-se, fraternalmente, para se constituírem uma alternativa natural a arraiais urbanos de espalhafatosos motivos figurativos, onde não faltam gingle bells para todos os gostos.

    Dispensam enfeites. Fazem a festa sem despesa. Reluzem, sem lâmpadas acesas, entoam, em surdina, modinhas ouvidas nos descantes vindimadeiros. Ninguém as foi arrancar entre sobreviventes de fogos fáceis. As folhas não são agulhas afiadas e resinosas, agressivas. São suaves ao tacto e ao trato.

    Poderia recitar-se a lengalenga das castas do Douro, mas essa qualquer um sabe. Há muito está memorizada, como oração de infância à espera de ámen.

    Registamos a mensagem destas parras nossas:

    - A vós, que nos amais, a nós, usufruidoras de paz desataviada, em modéstia isenta de ambições, desejamos isso mesmo. E que sejais rijos e sãos. Que cá estejais no próximo ano. Não seremos nós as protagonistas da decoração, mas não será ela muito diferente. Ámen.




M. Hercília Agarez, Natal de 2018

O Douro a fez ouro

Foto:josé alfredo almeida




O escuro lhe deu luz,
O Douro a fez ouro:
Sol arrebicado


M. Hercília Agarez

Olhar de Outono-72

Foto:josé alfredo almeida

Eternamente Douro-784

Foto:josé alfredo almeida