"Antes da minha visita, primeira e última, ao velho arqueólogo, tinha-me falado algumas vezes dele o meu ilustre vizinho José Afonso de Oliveira Soares, que já merecia o gracioso título de decano dos jornalistas da província. Tinha directoriado e redactoriado folhas desde a mocidade. As primeiras, as mais antigas, como a engraçada REGOA EM CAMISA, tinha-as composto e até ilustrado por sua mão. Precisava de gravura, fazia-a - desde o desenho à impressão meticulosa. Com um pedaço de papel, um taco de madeira, uma pena e por aí um canivete, pronto: a gravura ia para o prelo. Era um mago para tudo o que exigisse perícia manual.
Conheci-o sempre.Desde criança que me habituei a venerar-lhe os olhos luminosos e as barbas brancas. Era um velho, mas, pouco mais velho era do que o Dr. José Leite. Se fosse vivo, teria completado os cem anos em 1952.O Dr. José Leite, se fosse vivo, ia-lhe na peugada, com os seus noventa e seis. Eram meninos, a modo de dizer, do mesmo tempo.
Dizia-me, sempre sereno e sempre claro, o Sr. Soares: conheci no Porto ainda estudante, o Leite Vasconcelos. Frequentava a Escola Médica, mas, quanto a mim, ia pensando já em outra coisa...Vestido à antiga, afastava-se dos condiscípulos e ia por aí fora, às vezes até à Ribeira, observar os costumes do povo e escutar os modos de dizer daquela gente do Porto. Era um estudante original, isso era, mas, ninguém juraria que fosse...um futuro sábio.
Sublinhava este sábio com uma ponta de ironia tão fina, que se quebraria se lhe carregasse.
Concluía eu, entre mim, que o meu hábil vizinho não considerava uma inteligência o estudante especial, que andava pelo Porto a escutar o povo.
Com efeito, sempre que o Dr. José Leite lhe escrevia um postal, fazendo uma pergunta arqueológica ou etnográfica, o meu vizinho ria-se por entre barbas. Considerava ingénua a pergunta do sábio.
Verdade é que o intelecto do perguntador se tinha engrandecido, aplicando-se, sem desvio, a um estudo.O de Soares, talvez mais puro, dissipara-se, como a sua mão, em mil lavores. Jornalista, escritor, erudito, desenhador, gravador, modelador, pintor, o decano fora tudo isso sem ser nada disso em grau superlativo. O sábio deixou uma obra. O diletante...lindas tentativas."
João de Araújo Correia in "Revista do Norte"

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