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| Foto: josé alfredo almeida |
"Nisto, padre Boaventura estaca, cala a voz e erguendo a estola de cruz amarela a fazer pala sobre a vista, fica a olhar para os pendores do Marão. Os coros emudeceram e, no silêncio angustioso, todos se voltam para o mesmo lado.Que é?
É o Marão a arder!
É o Marão a arder, que os pastores incendiaram, para as primeiras chuvas renovarem a erva. Um fumo leve, branco, quase translúcido, vai de lés a lés da serrania. Padre Boaventura já tinha notado que do lado da serra, das paragens do norte, o ar era quente demasiado. O Marão atirava assim às vegetações, roídas de sede e calcinadas pelo sol, o seu hálito cáustico e permanente de gigante com pulmões esbraseados. Fixando melhor o olhar no monstro escuro da fraga, vê-se a labareda serpentar, como incomensurável cobra de lume, rojando-se pelas encostas fora, abarcando a cintura da montanha como um cilíco ardente.
O cortejo ali fica, surpreso e opresso, adivinhando que vai ser bem pior.Nem dão conta que os pés se enchem de folhelhos, como se os pousassem sobre brasume, e que nos buracos das camisas rotas os tatua exactamente no desenho dos rasgões.Afligem-se e cruzam os braços impotentes.
Padre Boaventura retoma a ladainha.Mas, muito esmorecido, de ânimo abalado, meteu a caminho da igreja.
Desparamentado, quando o povo já tinha retirado, veio ao adro esquadrinhar o céu, a ver se criava esperanças no milagre. Nada. Lá está o sol impiedoso, faulhando nas pedras e despedindo pelos montes alterosos, que fecham o horizonte em volta, ondas de calor. A terra, avermelhada das encostadas, fere-lhe a vista e a linha das cristas em redor é um quebra-mar de lume.
O Marão ficou toda a noite a arder. A estranha e infindável almenara da serra é um rio de lume que alastra na socalcada, adegaça na meia encosta e desagua no sopé em maré alta de chama:"
Pina de Morais in "Sangue Plebeu"

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