sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Memórias…Doces

Quartel Delfim Ferreira

Falar das minhas memórias dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua é recuar no tempo e mergulhar no mais fundo de mim, tal é o entrosamento entre a sua história e a minha meninice.
Tive sempre uma admiração enorme pelos "soldados da paz", por aqueles homens que, de forma solidária, voluntária e abnegada, acorriam ao chamar da sirene para socorrer o próximo.
 Das primeiras memórias que tenho é de estar ao colo do meu pai a ver o fogo num edifício - que era cor de rosa - ao fundo da rua do latoeiro, perto do cruzamento com a Avenida João Franco. Dividida entre o medo e a sedução, lembro os tons avermelhados das labaredas e a correria, entre escadas e mangueiras, daqueles homens que tentavam dominar aquele monstro em chamas.
 Recordo o entusiasmo com que o Bairro dos Bombeiros começou a ser sonhado - o meu Pai era Presidente da Direcção e o Sr. Cardoso era o Comandante - com o intuito de dar aos que serviam os outros condições de habitabilidade condignas e ainda por cima perto do Quartel.
 Recordo os desfiles em dia do aniversário, com os capacetes a reluzirem, os carros lavados e as fardas impecáveis. A minha mãe, pouco dada a devoções de outros santos, punha sempre uma colcha na janela, dizendo-nos que aqueles "santos" de carne e osso mereciam tal honra e reconhecimento. Ainda hoje me saltam as lágrimas quando vejo um desfile de Bombeiros! O Sr. Cardoso marchava à frente e ainda recordo a figura do Sr. Claudino, em lugar de honra, nobre, solene, mas tímido: a prova de que quem é realmente GRANDE permanece humilde!
 Naquele tempo em que as mulheres ainda viviam na sombra dos homens, acalentei, junto com as minhas irmãs, o sonho de um dia ser Bombeira. O Sr. Cardoso, com bonomia, dizia que aquelas tarefas não seriam próprias para meninas, mas que sempre poderíamos - quando crescêssemos - vir a ajudar no transporte de material ou em tarefas de arrumação. Viveu o tempo suficiente para ver as Mulheres serem bombeiras e tropas e juízas e diplomatas, trabalhando a par com os Homens e provando as suas capacidades! Como o mundo mudou!
Depois acompanhei outro sonho: o da ampliação do Quartel. Obra de arquitectura notável, o Quartel encheu de orgulho os que dirigiam e dignificou os que ali trabalhavam, propiciando melhores condições de socorro e de operacionalidade.
No andar de cima existia uma Biblioteca em que passei largas horas, vasculhando novos livros e entretendo-me a viver com as personagens em cenários imaginados, num tempo em que se vivia sem computadores e a televisão era a preto e branco. Também namorei alguma coisa, enquanto esperava a abertura, ao cima das escadas, onde o recato e o sossego alimentavam o enamoramento de quem tem 15 anos! 
 Com imensa emoção acompanhei a realização do XXIV Congresso dos Bombeiros Portugueses. A Régua, por esses dias, parecia uma cidade cosmopolita, e a rotina dos dias foi animada pelas celebrações. Relembro a Missa campal, celebrada em frente ao Tribunal e o desfile de todas as corporações: nessa altura é que foi chorar a valer!!!!
 Aprendi com os Bombeiros a ser solidária, a dar sem pedir nada em troca, a socorrer sem perguntar a quem, a respeitar todos e cada um e a considerar todos como iguais porque no sofrimento a alma humana não tem títulos, nem dinheiro, nem condição social!
Não posso deixar de referir, porque essa imagem me inunda a memória e me traz uma imensa saudade, a figura do Comandante Carlos Cardoso, que era, sobretudo, um Homem Bom. A sua figura distinta e elegante e o seu coração de oiro são uma referência da minha vida.
 Nós vivíamos na Rua da Ferreirinha. Em linha recta, a nossa casa ficava a cem metros do quartel. Por isso, às vezes, em noites raras de insónia, ainda julgo ouvir a sirene, rompendo o silêncio como um grito aflitivo. Nós - quatro miúdas de idades próximas - aproveitávamos sempre a oportunidade para nos metermos na cama dos Pais ou da Avó, porque tínhamos medo daquele toque e íamos sempre à janela tentar descobrir onde era o fogo. Na negrura da noite, a visão das labaredas nos montes de Loureiro ou de Fontelas era dantesca e alimentava as primeiras representações do Inferno que a nossa imaginação de meninas era capaz de elaborar.
 Memórias doces são as que guardo dos Bombeiros da Régua. Terra onde nasci e onde me fiz mulher e onde gosto de voltar para mergulhar no oiro do rio, na calma dos montes e no bordado das vinhas.
 Desejo que a terra seja capaz de continuar a honrar os seus Bombeiros e que estes continuem a servir com a mesma grandeza e a mesma dedicação.
 Para mim fica sempre a doçura das memórias!

Lisboa, 29 de Maio de 2012                         
Paula de Menezes Soares

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