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| Cenas da representação do Milagre do Cruzeiro, no Teatro dos Bombeiros da Régua |
Estou de volta ao Milagre
do Cruzeiro a pedido de alguém que gostaria de conhecer o essencial da
história contada na opereta, em episódios tão românticos como realistas. No dia
da estreia foi distribuído um livrinho -programa onde constava um resumo dessa
história e que agora transcrevo, com um ou outro acrescento da minha lavra.
Diz assim esse resumo:
“Era uma vez uma menina chamada Joaninha que, por ser órfã, foi recolhida e
amparada pela sua madrinha, a Srª Morgada. Vivendo no aconchego de tão santo
lar, a Joaninha não podia deixar de revelar as excelsas qualidades da sua
madrinha, se bem que ela possuísse um coração terno e afável, nunca indiferente
à miséria e dor alheias, daí resultando a estima de toda a gente,
principalmente os pobres que ela socorria.
Certo dia, por motivo
de um casual encontro com Fernando - mestre-escola – sentiu dentro de si a
chama do amor.
Alvaro, filho do
fidalgo dos Cabris, moço galanteador de quem as raparigas da aldeia fugiam, por
se dizer de boca em boca, ser autor de certos males, lembrou-se de dirigir
olhares pecaminosos e palavras intencionais à bondosa Joaninha, perseguindo-a
durante as suas visitas de devoção ao alto do Cruzeiro.
O maldoso João ferreiro
soube disso e estaria pronto a ajudar o fidalgo nos seus torvos intentos.
Inesperada tragédia
atinge em cheio Fernando e despedaça o coração de Joaninha. É que um tiro,
também inesperado, atingiu e matou o fidalgo, ele que momentos antes tinha
trocado umas palavras azedas com Fernando.
Joaninha, como louca,
foge de casa e dirige-se ao Cristo do Cruzeiro e implora-lhe a morte como único
alívio para a sua dor, para o seu coração desfeito! Tomba inanimada e o bom
Deus manda os anjos levantar o seu corpo débil e iluminar-lhe o caminho por
onde, novamente, a felicidade viria.
Foi milagre!!! E no fim
daquele trágico dia brilhou a luz da verdade! Soaram as “ Avé Marias”.
Este último quadro, tal com estas últimas palavras, fazem
crer que o autor, Rafael Magalhães, era um homem de devoção e de fé. De facto,
era de uma religiosidade singular, intimista de todo, e entendia que qualquer
prece, qualquer diálogo com Deus, devia acontecer com muito respeito e total
privacidade.
E é crível também que o autor da opereta, ao passar
diariamente na rua Pedro Verdial, tenha encontrado ali uma fonte de inspiração,
fosse no palavreado das mulheres do soalheiro, fosse nos janelões gradeados da
velha cadeia onde os detidos, desirmanados do mundo e da razão, tinham olhos
libertos e afoitos a todo o largo da concha reguense.
Já agora, traga-se aqui aos cenários duas ou três personagens
que ficaram para sempre na memória de quem as viu em cena. Pontificava a Teresa
Chocalheira, serviçal da Sr.ª Morgada. Parecia o diabo à solta num mundo de
milagres, mas não se servia de impropérios descabidos nem usava termos
estapafúrdios. O seu fraseado eram só chalaças, sarcasmos e ironias, respostas
na ponta da língua, de mais a mais com assentimento e aprovação da patroa, a
Sr.ª Morgada. Também o oficial de diligências, figura bem delineada e tão bem
desempenhada pelo inconfundível Teixeirinha (lembram-se?). Diante da Teresa
Chocalheira e diante das provas que incriminavam o assassino do fidalgo
mostrava-se muito confuso, hesitante e inseguro, cheio de embaraços, a fazer as
suas partes gagas. Novelas, o regedor, ou António, o perdido, eram dois figurantes
que nos diálogos e na postura se revelaram com muita desenvoltura, tal como o
João ferreiro, a disfarçar as sobras dos seus maus humores.
No final da opereta, final da história, surgiam duas figuras
de anjos na beatitude milagrosa do cenário, e um coro de vozes cantou uma
Avé-Maria.
Diga-se, agora, que muita gente tem dito que O Milagre do Cruzeiro devia voltar à
cena. Acho que não…Os tempos são outros, e se mudou o mundo, também mudaram as
circunstâncias. Nos tempos que correm, tempos confusos e destemperados, o
“milagre” não teria cabimento nem aceitação. Deixemo-lo no pó dos arquivos.
Enquanto isso, venho eu à boqueira do palco do velho Teatro
dos Bombeiros da Régua dar vazão aos cenários do sentimentalismo.
Manuel Braz de
Magalhães
Janeiro/2013

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