Graças à amabilidade de José Alfredo Almeida, tive
acesso ao trabalho académico sobre a coleção da Misericórdia da Régua exposta
no Museu do Douro, escrito por João Filipe Tomé Duarte e orientado pelo
professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Agostinho Araújo
(2011). As informações de que disponho sobre essa coleção provêm deste
trabalho.
Estão identificados três autores do conjunto de
retratos de benfeitores do Hospital D. Luís I e da Santa Casa da Misericórdia
da Régua expostos no Museu do Douro:
Francisco José Resende, Marques de Oliveira e Afonso Soares. Dos três, só este
último era auto-didacta, não tendo, ao que parece, beneficiado de uma educação
artística formal.
Todavia, quando olhamos para os retratos, não há
qualquer dúvida de que aquele que tem sobre nós maior impacte foi pintado por
Afonso Soares: refiro-me ao retrato do benemérito galego Pedro Verdial, datado
de 1905. Aliás, o Museu do Douro escolheu esta obra, e não qualquer uma das
outras, para anunciar a exposição na Internet.
Por mim, atrever-me-ia a dizer que o retrato de Pedro
Verdial, apesar da inabilidade técnica que também o caracteriza (a modulação
excessivamente dura dos relevos da roupa, por exemplo), é um dos retratos mais
dignos de atenção da pintura portuguesa de entre o século XIX e os nossos dias.
Acresce que quase todos os outros retratos da coleção pintados por Soares me
parecem mais fortes pictoricamente que os que foram executados pelos outros
artistas.
Neste artigo vou procurar enumerar algumas razões para
este paradoxo: o pintor menos preparado academicamente é aquele que, em minha
opinião, fez retratos mais interessantes (remeto também para o meu pequeno artigo
sobre o assunto no Público de 9 de Fevereiro
último).
O retrato de Pedro Verdial impressiona-nos antes de
mais porque, de entre todos os retratados da coleção, é certamente aquele que
tem um rosto e uma cabeça mais característicos. Afonso Soares acentuou com
grande talento os traços do seu modelo, a calvície, o nariz, as rugas, as
suíças grisalhas, compondo uma figura para a qual nos sentimos compelidos a
olhar: eis um rosto que não é nada banal ou desinteressante. Eis um rosto que
não pode passar despercebido.
Claro que não é somente aos traços físicos do modelo
que se deve o impacte do retrato: o pintor podia ter suavizado esses traços,
dotando o quadro de dispositivos de dialogo com o observador, como aliás fez
noutros retratos seus da coleção, seja colocando o rosto a três quartos, seja
pintando uma mão apoiada no rosto, seja, enfim, colocando um sorriso no rosto
do seu modelo.
Mas não foi isso que Soares escolheu fazer. Repare-se
que em todos os seus retratos se verifica a mesma rigidez da pose e
não-transparência do olhar. Como escreve Tomé Duarte, Afonso Soares “descura a
execução do retrato psicológico dos personagens”. No retrato de Pedro Verdial a
rigidez é de tal modo acentuada que se torna hierática: há uma imobilidade da
pose e do olhar que é tão poderosa como a severidade dos traços fisionómicos.
Mas são precisamente estas características que tornam
os retratos de Soares tão interessantes.
José Alfredo Almeida enviou-me uma fotografia de um
rosto de Cristo pintado por Afonso Soares. Sem ter disso a certeza, penso que
se trata de um estudo ou cópia a partir de uma pintura do século XVIII,
provavelmente espanhola, mas invoco aqui esse quadro porque não vejo nele
qualquer inabilidade técnica. Pelo contrário, trata-se de uma pequena obra que
demonstra que Afonso Soares era capaz de pintar como pintavam os artistas
académicos.
Nestas circunstâncias, torna-se ainda mais pertinente
averiguar porque não pintou assim os seus retratos. Uma primeira pista poderá
residir no facto de terem sido executados a partir de fotografias (como, aliás,
todos os retratos da coleção, segundo Tomé Duarte). A fotografia é inerte. Está
ali, à frente do pintor, sem respirar, sem trocar duas palavras, sem sorrir...
ou sem deixar de sorrir. É normal que resulte em retratos menos ricos em
sugestão.
Regresso adiante ao problema da fotografia mas adianto
desde já que esta explicação não me parece totalmente convincente. Não creio
que a rigidez dos retratos pintados por Afonso Soares resulte por inteiro do
facto de se terem baseado em fotografias. Afinal de contas, também o foram os
retratos de outros pintores na coleção, que são muito mais “naturalistas” que
os de Soares.
Proponho dois conceitos para podermos pensar este
problema: o conceito cristão de ícone e o conceito hindu de darshan.
Podemos relacionar entre si estes conceitos (como
alguns estudiosos nos ensinaram). O ícone, criado pelo cristianismo oriental há
mais de mil e quinhentos anos a partir de precedentes romanos e orientais, e
ainda dominante no culto das igrejas Ortodoxas, é uma imagem de Cristo, de
Nossa Senhora ou de Santos, que se caracteriza, como se sabe, pela sua
frontalidade, rigidez, olhar fixo e inexpressivo. O conceito hindu de darshan, por seu lado, dá conta do
exercício espiritual praticado pelo devoto que consiste em olhar longamente uma
imagem sagrada que, não tendo qualquer expressão que suscite empatia, permite,
por isso mesmo, que o devoto se “perca” na contemplação.
Como se percebe, é precisamente porque o ícone cristão
ou a imagem sagrada hindu não “dialogam” com o observador que este pode ficar
como que hipnotizado por elas, mergulhando no darshan que caracteriza a sua força espiritual.
Neste momento, poderão estar os leitores a dizer para
si mesmos que não tem qualquer cabimento ou lógica invocar estes conceitos e
precedentes a propósito de um retratista amador de Peso da Régua na primeira
metade do século XX.
Mas, agradecendo antecipadamente a paciência do
leitor, peço-lhe que regressemos então à fotografia.
Quando apareceu no início do século XIX, e até à sua
democratização tecnológica e económica, a fotografia revalidou o conceito de
ícone. De facto, a fotografia exercia um efeito-darshan, deslumbrando o olhar indefeso do observador através da
crença, como que sagrada, de que em cada imagem fotográfica há um vestígio
verdadeiro da realidade, incluindo da realidade que já passou. Como se sabe,
certos povos ditos “primitivos”tinham um verdadeiro pavor da fotografia porque
acreditavam que esta lhes capturava o espírito e podia fazer regressar os
mortos, mas até as pessoas mais “civilizadas”que, no século XIX, lidavam com a
fotografia começaram por olhar para as imagens de uma maneira pouco utilitária,
quase mística. Os homens e mulheres que posavam para a fotografia nessa época
tinham consciência da operação “mágica” em que estavam envolvidos: a sua
verdade ia ser transposta para uma película foto-sensível. Até há relativamente
pouco tempo, como demonstraram alguns trabalhos de antropólogos, os indianos
das classes populares faziam rodear o acto de tirar um retrato de inúmeras
precauções: o olhar tinha que ser frontal, as mãos tinham que ficar à vista, a
roupa devia ser de cerimónia, etc. Basta conhecer-se superficialmente o
retratismo fotográfico ocidental do século XIX para nos apercebermos que as
coisas também se passavam assim nestas partes do mundo.
Ou seja: Afonso Soares, como todos os outros pintores,
trabalhou com retratos-darshan e
retratos-ícone, mas só ele permitiu que essas características passassem para a
sua pintura, ao contrario dos seus colegas que procuravam impedir os seus
quadros de se parecerem com fotografias. Sendo mais “inábil”, Afonso Soares foi
afinal mais moderno.
Recorde-se que os modernistas admiravam as artes
primitivas, mas também que o naturalismo e o realismo não foram as únicas correntes
da pintura do século XIX e do início do século XX. No quadro da pintura
religiosa manifestava-se frequentemente a tendência para recorrer a modelos
“primitivos” (a pintura do século XV e até os ícones bizantinos). Estes
pintores acreditavam que só esses modelos podiam suscitar a verdadeira devoção
dos crentes, justamente porque não eram “realistas”.
No pequeno artigo que escrevi para o Público, referi a propósito de Afonso
Soares um retrato de crianças executado pelo pintor alemão Otto Runge (1777-1810).
É muito interessante o contraste que existe na obra de Runge entre os retratos
de adultos, que são absolutamente “normais”, quer dizer, são retratos
psicológicos à maneira moderna, e os retratos de crianças, nas quais Runge
detectou de maneira particularmente incisiva a inexpressividade bruta que estas
por vezes apresentam, o seu alheamento interior. Runge contesta a representação
das crianças como pequenos anjos, então vulgar, e apresenta-as enquanto verdadeiros
alienígenas, seres estranhos, para os quais não havia convenções de
representação. Esta inquietante familiaridade é precisamente aquela que, creio
eu, transparece nos retratos de Afonso Soares.
Procurei neste artigo pensar a pintura de Afonso
Soares fora da antinomia académico-amador que se torna uma verdadeira armadilha
se nos impedir de olhar para os retratos de uma maneira ao mesmo tempo
histórica, situada na sua época, e trans-histórica, quer dizer, atravessando
toda a história das artes. E sobretudo se nos impedir de desfrutar da inquietação
que os singulares retratos de Soares provocam em nós.
Paulo Varela Gomes
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