Quarteleiro Zé Pinto ( lado direito) |
Era uma vez uma criança nascida
no ano em que dois dos maiores ditadores da História se digladiavam nas estepes
de Estalinegrado. Um ano em que se misturaram cobardia e coragem, traição e
patriotismo, loucura e heroicidade. A sua inocência não compreendia as aflições
dos adultos nem o racionamento que o Avô impunha ao azeite para as jardas fritas. Cresceu a ver os montes
amarelecerem no Outono e reverdecerem na Primavera; os homens a subi-los e a
descê-los alagados em suor e em cansaço. Era o tempo em que se um pobre comia
galinha ou estava esta ou ele doentes. A fome zunia pelos caminhos e pelos quelhos percorridos pelos pés
descalços. Comiam-se azedas e amoras silvestres, figos lampos ou uvas ainda
verdes roubadas nas estremas. A natureza enchia-se de signos que possuíam a
maravilhosa simplicidade da criação. Os Verões secavam as terras e engorduravam
as gentes, as sombras das folhas ou dos alpendres serenavam as sestas.
Amavam-se os calços, mas vivia-se sem pressas; o ar rarefeito de uma
indefinível felicidade, como se não se pertencesse a nenhum lugar, a relação
entre o mundo e os outros fosse uma extensão do olhar. Os melros cruzavam voos
e melodiavam nos bardos sem receios de caçadeiras; um rouxinol cantava, no
abrandar do calor, para os lados do Fontão. A paisagem surgia-lhe no olhar e
absorvia-a com o sangue e o cérebro.
Ignorante, praticava, inconscientemente, o velho princípio de que a humanidade
cumpre-se no entendimento da terra e do ar.
Do alto de São Pedro via o rio a desenhar a
curva do Salgueiral, e do lado de lá, em Riobom, no Côto, os Avós paternos tentavam esquecer
mortes roubadas na flor da idade. A Vila era a sua cidade, com carros para cá e
para lá, sinaleiros de luvas brancas a abrir-lhes o caminho, lojas de cornetas
de barro, harmónicas fado português,
bombos, carros de bois e camionetas de madeira; os balcões onde se apreçavam os
tecidos para os vestidos das festas e as agências bancárias cujas portas se
abriam ou fechavam para poupanças ou necessidades.
A criança cresceu assim entre o
alto de São Gonçalo e o Largo dos Aviadores quando o Avô que a criava decidia
não esperar pela carreira e pedia ao
Palhinhas que os levasse a casa.
Na hora em que, da Cumieira, a carrinha do
Sousa trazia a boroa, e as mulheres com os filhos ao colo ou de canecos á
cabeça corriam para a loja, ouvia no Rádio Alto Douro os discos pedidos para
«os olhos castanhos do meu amor» ou para a paixão da minha vida». Quando o sol,
em Avões, dizia até amanhã, ajudava o Xico na rega da horta e molhava os
espantalhos que estavam «todos aganados». No caminho da Senhora da Graça, a
Margarida cantava Mariana lá da serra/Não
saias da tua terra/ Para seres americana/ Ó tirana se és tão bela/Deixa o
marujo ir á vela/Tem cautela Mariana. Estavam ainda distantes os anos da
Memória: o tempo entre o que nos precede no entendimento e o que nos resta na
recordação; a equação entre o que fomos e o que somos, que ninguém morre quando
a sua lembrança permanece.
Com muita vida ainda para viver,
mar para navegar e continentes para conhecer, adolescente à espera dos
primeiros pêlos, percebeu rápido que nunca recuperaria de um trauma de
infância, como ferro em brasa no corpo e na alma; uma marca de identidade, uma mancha inapagável, uma sombra vitalícia na
história da sua existência.
Foi, pelo Caminho Velho abaixo,
na companhia do Alberto, cortar o primeiro cabelo no fundo de Medreiros, matou
a sede no jacto do jardim diante da
Câmara, andou nos carrinhos da
Alameda com o Socorro à porta, e espantou-se diante do quartel do Bombeiros.
Nunca mais esqueceu essa imagem.
Era novo e cheio de ilusão. Temia
que as estrelas cadentes, nas noites de Agosto, incendiassem os silvedos e os
morouços, onde os caçadores, nas tardes de caça outonais, metiam os furões, e
os homens dos capacetes dourados tivessem que vir no «descapotável vermelho»
apagar as chamas vindas do céu.
Sim, era novo e inocente. Ignorava que os ossos do País estavam estampados nos
olhos que se espiavam, nos silêncios repentinos que se faziam nas mesas de
café, nos tarrafais escondidos da
Pátria, nas lágrimas das casas esventradas, nos homens e mulheres perseguidos
por não estenderem os braços ou recusarem os seus ideais.
Sim. Era novo e ingénuo. Sonhava com os olhos
da Marisol; com a voz do Joselito; não gostava que a Mãe cantasse o Ai Mouraria
da Amália, parecia-lhe que chorava, e adormecia com os cães a desafiarem-se nos
portões, os bufos dos gatos esbaforidos pelas ruelas e uma coruja no Cume a
ecoar presságios.
Foi no Avenida que viu Sissi a Jovem Imperatriz, e
dedicou o seu primeiro amor casto à Romy Schneider... Mais
tarde, no Salão dos Bombeiros, no Baile
das Vindimas, dançou o twist e corou como um tomate por trocar os passos do
tango… Era um tempo de sonho e
aventura, sedução e prazer; um tempo que
lhe dava todo o tempo, que soprava sobre ele pelo estreito funil que ia do
presente até ao futuro; ainda não tinha passado e vivia a dimensão das suas
horas.
Essa criança cresceu e agora
envelhece – sou eu…
Por escolha ou imposição sempre andei longe da
nascença, recuperando-a, amiúde ou esparsamente, conforme a distância do chamamento.
Passava, e passo, muitas vezes junto dos nossos Bombeiros, mas jamais esqueci
uma sua IMAGEM: o Senhor Zé Pinto à porta do Quartel, encostado, com um pé no
estribo, a um carro, um cigarro na mão. Mais tarde cumprimentei-o, ali para os
lados de Godim, onde me deslocava para visitar queridos amigos conhecidos na
minha comissão militar em África. Nunca fui das suas relações. O meu
conhecimento com ele, contudo, foi total.
Explico:
Acho que todos, na vida, nos
cruzamos com pessoas de quem não gostamos: uma cara de petulância, um ar de
bolsa farta, um olhar de cima a espezinhar os outros, um falar de vaidade
insuportável, que repele qualquer vontade de contacto. Há casos em que nos
enganamos, é certo, e o gelo transforma-se na reciprocidade da empatia, mas há fotografias que nenhum negativo consegue alterar em segundas
provas. O Senhor Zé Pinto tinha a postura garbosa por pertencer aos Bombeiros;
o orgulho de ser útil, num sorriso de cativante modéstia, que é sempre a marca
das almas generosas; cativava o olhar e fomentava a simpatia dos passantes;
tinha um rosto de bom carácter na honradez
do fato macaco.
Eu falo assim porque o mundo está
cheio de basófias, ingratos que esquecem
a prosperidade que conseguiram à custa dos assalariados e do sistema que os
defende, e, agora, têm o descarinho intolerável de escarnecerem de uma
sociedade em estado de necessidade, que vai buscar sempre aos mesmos os
sacrifícios da salvação.
Muitos honestos e simples tiveram, têm e terão os Bombeiros da nossa e de
todas as terras. Homens que por um pedaço de nada arriscam a orfandade e a
viuvez de quem fica. Sujeitos à traição numa qualquer Serra, numa curva de
estrada, num morro inacessível, num cavado sem fuga, numa casa em labaredas,
numa dedicação de fraternidade. Pessoas destas não gananciam milhões, são
felizes na ajuda, não vêm em nenhuma lista da FORBES, não precisam de fingir
solidariedades – ELES SÃO A VERDADEIRA HUMANIDADE. Não fingem à pobreza –
combatem-na; não se desculpam com a escassez de meios – suplantam-nos; não se
encolhem no perigo – dominam-no; não se esquecem dos que morrem – choram-nos;
não se assustam perante o cordão umbilical – erguem a vida; não se importam do
esquecimento – deixam escrito o exemplo.
Numa altura em que, nesta cidade, se vai
realizar um Congresso de Bombeiros, saibamos lembrar todos aqueles que se
bateram com alma e suor, raiva e generosidade em defesa da comunidade.
Na pessoa do dr. José Alfredo Almeida, rato de biblioteca na procura de tudo
que respeita à Corporação a que preside, numa dádiva que chega a comover pela
raridade nestes tempos de egoísmo, que alia a cultura ao entusiasmo da
partilha, e que, sorrindo às dificuldades, se abalançou, em parceria com a
editora Mosaico, na escrita de um livro para este acontecimento nacional, o meu
brado de admiração.
É bem verdade que as grandes heranças são os
gestos que não se esquecem, as obras que se deixam nos alicerces da eternidade,
os sorrisos de carinho e os olhares de amor. Recordei-me de tudo o que deixo
escrito ao ver uma foto antiga em que está o SENHOR ZÉ PINTO. Há seres humanos
que são parte da iconografia de uma sociedade e de uma geração. ELE É-O.
M. Nogueira Borges
ia jurar que nessa foto era o meu pai que estava ai de capacete :/
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