Quanto mais conheço do passado da Associação dos Bombeiros da Régua, mais aprendo sobre a História da Régua. Entre a história de uma secular instituição e a de uma cidade cruzaram-se pessoas e registaram-se acontecimentos marcantes socialmente que, em cada época, teceram a mentalidade da sociedade reguense. Podia dizer-se que pela história da Associação de Bombeiros da Régua se faz parte da História da nossa terra, seja ela política, associativa, económica ou social.
Vejamos elucidativo exemplo que prova como um simples relatório de contas, apresentado pela gerência dos bombeiros aos associados, pode revelar como e em que medida os soldados da paz eram apoiados pela sua autarquia. Recuemos, então, até ao ano de 1903, ao tempo da monarquia, para se entender o que se passou de invulgar para as contas dos bombeiros apresentarem um resultado deficitário, o que muito preocupou os directores e associados mais assíduos, reunidos em assembleia-geral. Quem sabe de assuntos de contabilidade percebe que da comparação entre os números das receitas e os das despesas se retiram conclusões do rigor de uma boa ou errada gestão. Se o resultado final dá saldo positivo, tudo está bem e ninguém vem reclamar. Se o resultado é negativo, recomenda que se apurem as razões por que se fizeram mais gastos ou então, se foi caso disso, porque falharam os proventos.
No caso que apontamos, o problema esteve do lado das receitas, que diminuíram, ao contrário do que seria esperado. Diz esse relatório – frisa bem - que “este defficit foi determinado exclusivamente, pelo facto de a câmara municipal se negar a dar o subsidio com que, desde muito, vinham auxiliando a associação”.
Quem governava a câmara municipal, há mais de treze anos, era o partido regenerador, representado então pelo Dr. Júlio Vasques - ilustre Paladino do Douro -, com o partido progressista, do advogado Dr. Manuel da Costa Pinto, muito activo na oposição.
Aquela decisão política não deixou de ser duramente contestada pelos directores da instituição, os quais não entendiam que estivesse orçamentada uma verba de 50.000 réis para o serviço de incêndio e, como aquele relatório menciona, “essa quantia não fosse entregue à Associação, visto não haver aqui outro serviço de incêndios, além do dos voluntários”. Os directores dos bombeiros recorreram dessa decisão camarária, mas a vereação ignorou a pretensão dos bombeiros, sem sequer dar uma razão para suprimir o apoio à sua actividade.
O que terá levado o presidente da câmara, Dr. Júlio Vasques, um experiente político, a retirar o subsídio aos bombeiros voluntários, que prestavam um verdadeiro serviço público à sociedade reguense, não se entendeu - nem hoje se entende - muito bem. Parece que as leis de atribuições municipais, à data, não obrigariam a câmara municipal a financiar o serviço de extinção de incêndios, entregue à responsabilidade de ser assegurado pelos bombeiros voluntários. Se a autarquia reguense, como muitas outras no país, tinha optado por não organizar um serviço municipal de socorro para evitar gastos elevados ao erário público, tinha a obrigação de garantir um apoio mínimo para manter em regular funcionamento a missão humanitária atribuída aos bombeiros voluntários.
Na imprensa local, os contornos deste conflito da câmara municipal com a Associação de Bombeiros assumiam uma rivalidade política partidária. Os regeneradores acusavam os Bombeiros da Régua de estarem na sua maioria filiados no partido progressista. Sendo verdade, não seria motivo para serem prejudicados, mesmo que os líderes principais fossem politicamente progressistas, como Joaquim Souza Pinto, Francisco Lopes da Silva, João Alves Barreto e o benquisto capelão, Padre Manuel Lacerda. O bissemanário O Douro, em diversos números, serviu de porta-voz destes directores que fizeram críticas contundentes ao presidente da câmara:
“ O Sr. Julio Vasques perdeu um excellente ocasião de estar calado – em relação aos bombeiros, já se sabe. Devia ser coherente. Já que os esbulhou do subsidio que tão necessário lhe era para continuarem a exercer, sem dificuldades, a missao honrorrisima que se imposeram, para compra de material indispensável ao seu serviço e para custeio das despesas mais ou menos avultadas que fazem quasi sempre na vila e nas povoações próximas…
(…) O garoto podia dar à sua pedrada aplicação mais justa. Jogasse-a contra os vereadores, que faria nisso uma boa acção, castigando-os da brutalidade que cometteram em eliminar do orçamento camarário a verba com que o municipio vinha subsidiando há muito aquella prestante corporaçao. Politica? O garoto não sabe o que diz. Os bombeiros não fazem politica partidaria. São contra a câmara, porque esta os melindrou sem motivo plausível, deixando de subsidiar a associação. Que importa que a maior parte d`elles estejam filiados no partido progressista, se, quando se tracta de serviço, nunca fazem a distinção entre progressistas e regeneradores, e a todos acodem com a mesma solicitude e boa vontade?”
“Agora que os regeneradores regoenses estão prestes a serem escorraçados do seu último reducto – a câmara municipal - vamos relembrar alguns agravos que elles nos fizeram durante o seu longo e escandaloso mandato.”
(…) Dias depois, a mesma câmara, allegando que na Associação de bombeiros voluntários prevalecem os progressistas, resolveu supprimir do seu orçamento o subsidio com que o município auxiliava, desde muito, aquela benemérita corporação, ficando esta em risco de acabar por falta de recursos.”
Aos nossos olhos, aquelas críticas, mais do que tudo, revelam a discordância duma decisão política – hoje designada de politicamente incorrecta. Os bombeiros não eram opositores políticos dos regeneradores e, como salientaram, estavam contra a câmara municipal por terem sido melindrados sem motivo plausível. Quer dizer, os bombeiros, como é de ver, estavam contra o Dr. Júlio Vasques, que terá recorrido a uma estratégia política de fazer pressão, no sentido de conquistar correligionários e, dessa forma, aumentar o número de apoiantes do partido regenerador. Não se compreende que um autarca, no seu perfeito juízo, retire sem explicação o financiamento devido à única organização de socorro que tem no seu concelho e, assim, ponha em perigo vidas e bens.
Sabe-se que o Dr. Júlio Vasques nunca foi um cidadão consensual entre os seus contemporâneos, mesmo no grupo dos Paladinos do Douro, onde algumas das suas intervenções não mereceram um aplauso unânime dos seus pares. E, no exercício das funções de presidente de câmara da Régua, a sua gestão foi sempre muito contestada pelos opositores e pela Associação de Bombeiros.
Mas, se esta sua decisão política, sempre polémica e discutida, não serve para lhe diminuir o prestígio e notoriedade que alcançou como um paladino activamente empenhado na defesa do Douro e dos interesses da viticultura, não deixou de ser incompreensível para aqueles bombeiros que, no espírito da sua missão humanitária, só queriam cumprir com dignidade um lema universal: Vida por Vida.
José Alfredo Almeida
Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua
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