Foto: Arquivo dos BV da Régua |
* Sendo verídica nos personagens e factos essenciais, esta história teve de ser atiçada com uns sopros de ficção, já que a memória nem com lente de aumento me valeu em certos detalhes. Quanto ao excesso de devaneios, peço perdão, mas a nostalgia foi o meu maior combustível. Em todo o caso, aqui deixo a verdade que me importa.
Em
jeito de segredo, o meu pai tinha-me ensinado a técnica mas era a primeira vez
que eu o fazia por minha conta e risco. Era grande o medo, mas superior e irreprimível
era a vontade de, com as próprias mãos, provocar as forças da natureza. Silenciosa
como um pardalito, recolhi na escrivaninha da minha mãe os instrumentos e
esgueirei-me para a varanda onde o sol, em estival fulgor, me prometia o
sucesso. De precisão e tempo também sabia que ia necessitar. Mas sobre o que
aconteceria depois, a única coisa que pensei foi um logo se vê próprio
da idade.
Segurei
a lente de aumento numa das mãos e o papel na outra, ambas trémulas de
excitação, e fui-me deslocando devagar até conseguir a melhor posição. Depois
ajustei a lente, recordando o modo como vira o meu pai fazer. Mais para cima,
mais para baixo, um pouco mais de inclinação, até que um feixe de luz pura,
intensa e afiadíssima incidiu no papel branco. Orgulhosa, relaxei e fiquei à
espera. Bastou-me um pouco de paciência para ver então a magia acontecer-me nas
mãos. Começou por ser um ponto negro libertando um fumo tímido e vagaroso.
Depois abriu-se num buraco que ganhou vida própria e se foi expandindo no papel,
diante do pasmo dos meus olhos. Mas no exacto momento em que a chama despertou,
prova do meu sucesso, a minha avó materna surgiu na varanda, com as mãos na
cabeça e o horror nos olhos.
-
Ai, minha Nossa Senhora, que estás a fazer? Vais desgraçar-nos!
O
susto foi-me uma mola. Num ápice soprei, abanei a folha de papel, atirei-a ao
chão e calquei-a até apagar tudo. Não pensara que pudesse ser apanhada mas por
certo a minha avó desconfiara do meu silêncio prolongado, habituada que estava
a ouvir-me saltitar pela casa. Sabe-se: aquilo que nos adultos é sintoma de
tranquilidade, nas crianças pode bem ser a evidência de um acto clandestino e
frequentemente catastrófico. E para a minha avó, mesmo depois do fogo apagado,
a catástrofe continuava iminente.
-
Valha-nos Deus! Queres pegar fogo à casa e depois da casa vai o prédio todo,
uma tragédia, que nos matas a todos! Não se brinca com o fogo, o fogo é o
inferno, as chamas consomem tudo, dão cabo de tudo!
Chorosa
e distorcida, deu a sentença:
-
Só me dás consumições… Era quem te desse duas solhas nessa cara!
As
solhas não cheguei a levar, que sou filha de gente pacífica e de mão contida. Mas
depois da cena regressei ao quarto plenamente convencida de que aquela tinha
sido a mais próxima visão do inferno que eu haveria de ter. Pelo menos até ao
dia da morte, momento em que, fazendo fé na minha avó, os actos levianos têm o
justo castigo.
Para
minha felicidade, a três horas de viagem estava um mundo novo, um universo
paralelo onde as verdades se reescreviam diariamente. Resgatada à gaveta onde
vivia na cidade do Porto e onde a falta de liberdade me impelia à irreverência
e ao fazer acontecer, chegada à Régua bastava-me esperar e tudo acontecia, não
por magia mas por milagre.
Mantivesse
os cinco sentidos em permanente alerta e a natureza revelava-se sem precisar de
ser espicaçada com lentes de aumento. Aguaceiro, trovoada, mosto, tília, terra,
bicharada, não que não os houvesse na cidade, mas aqui tinham a sua justa
moldura, que realçava cores, aromas e texturas. Dois mundos distintos, avessos
um do outro, por onde eu me dividia com ânsias e prazeres igualmente distintos.
Mornas,
as noites de Agosto apeteciam. E a lassidão que sobrava nos corpos depois do
jantar inspirava a prosa relaxada da família reunida no pátio, debaixo das
estrelas e do frenesim da mosquitada. Do que falavam os adultos não recordo,
porque ocupações próprias da idade absorviam a minha atenção, mas tenho
presente uma saudável alternância entre o riso e a seriedade, o quotidiano e o
intemporal. À volta, tudo era imensidão, abundância de aromas, sombras que a
imaginação deformava, rumores de pequeníssimas vidas que despertam quando a luz
morre.
Foi
numa dessas noites de Agosto, meu paraíso, que tive a primeira visão do inferno
concreta e terrena, diante de mim. A tranquilidade do serão familiar foi
interrompida pelo aviso de que havia fogo, para Sul. Apontavam: era além, ao
fundo, antes mesmo da concha onde as luzes da cidade se aninhavam. Num salto
nos erguemos, descemos as escadas, passámos o portão e subimos a calçada para
ver melhor. Entre nós e o fogo estendia-se um imenso e geométrico tapete de
vinhedos. Estávamos longe, mas outros estariam perto.
Miúdos
e graúdos agitados, exclamações de surpresa, suspeitas, perguntas. Eu, pequena
e ignorante de causas e consequências, abrigada nas curvas suaves do corpo da
minha mãe, sem saber se havia de me espantar ou de me horrorziar, se era mais
certo ajoelhar-me ou tapar os olhos.
Os
homens tranquilizam pela palavra, as mulheres pelo corpo, e não há feminismo capaz
de subverter esta verdade. Quando do homem se espera um discurso, um desfiar de
argumentos que ponham os pontos nos “i”, os pés no chão e a cabeça na ordem, à
mulher basta um gesto. Colo, braço, mão, ligeiro virar da cabeça, peito
disponível, condescendência do olhar, reorganizam as emoções e põem o mundo
inteiro a salvo. Por isso, enquanto eles debitavam suposições sobre a origem do
fogo e o seu exacto local, analisavam a direcção dos ventos e sentenciavam
desfechos, elas, sem esconder o temor e a aflição, aconchegavam-se e aconchegavam
os mais novos.
Gulosas,
as labaredas cresciam para onde houvesse alimento. E se o havia! Agosto, seco e
abafado, é um banquete. Em nada aquilo se comparava à chama tímida que eu
provocara na varanda do Porto e que extinguira como quem mata um insecto. E na
escuridão da noite, o fogo ganhava uma presença assombrosa, iluminava os céus,
ofuscava a cidade, deformava o horizonte. Como um animal possante, aceso de
raiva, atiçado por um poder mágico e superior.
Mentiria
agora se dissesse que a seguir ouvi as sirenes e vislumbrei ao longe a heróica batalha
dos bombeiros contra o fogo, munidos de instrumentos, armados de coragem.
Precisaria da imaginação em que sou pobre para os detalhes dos seus gestos, dos
seus destemidos avanços e prudentes recuos, do frenesim, do medo e das
hesitações. Onde iria eu buscar a ideia que não tenho de certos cheiros, das
visões esfumadas, de uma fornalha viva e gigante, da persistência para além de
toda a desorientação? Fica assim a faltar nesta história o climax, a tensa e
magnética descrição de horrores que normalmente precede o regresso da harmonia
e os finais felizes. É que, mesmo esgravatada a fundo, a minha memória não
colaborou. Mas sei que o que não recordo nem sei ficcionar aconteceu, porque a
manhã seguinte acordou mansa e pura como todas as outras e dos céus não havia
caído uma única gota de chuva.
Como
ao longo da vida comprovei, o inferno vai acontecendo por aqui, na terra, nas
encostas, nas aldeias, às vezes entre quatro paredes, provocado pela explosão, o
erro, o crime, a cegueira e tudo o mais que inflama e consome. Mas, com a mesma
força e superior vontade, Deus usa o corpo e o coração de certos homens, despertando-lhes
a coragem e afinando-os em generosidade, para que a natureza continue a ser um
ventre fértil que perpetue o paraíso.
Olga Magalhães
Sou fã da escrita da Olga. É um privilegio poder lê-la.
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