quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Os guardiões do paraíso


Foto: Arquivo dos BV da Régua



* Sendo verídica nos personagens e factos essenciais, esta história teve de ser atiçada com uns sopros de ficção, já que a memória nem com lente de aumento me valeu em certos detalhes. Quanto ao excesso de devaneios, peço perdão, mas a nostalgia foi o meu maior combustível. Em todo o caso, aqui deixo a verdade que me importa. 

Em jeito de segredo, o meu pai tinha-me ensinado a técnica mas era a primeira vez que eu o fazia por minha conta e risco. Era grande o medo, mas superior e irreprimível era a vontade de, com as próprias mãos, provocar as forças da natureza. Silenciosa como um pardalito, recolhi na escrivaninha da minha mãe os instrumentos e esgueirei-me para a varanda onde o sol, em estival fulgor, me prometia o sucesso. De precisão e tempo também sabia que ia necessitar. Mas sobre o que aconteceria depois, a única coisa que pensei foi um logo se vê próprio da idade.
Segurei a lente de aumento numa das mãos e o papel na outra, ambas trémulas de excitação, e fui-me deslocando devagar até conseguir a melhor posição. Depois ajustei a lente, recordando o modo como vira o meu pai fazer. Mais para cima, mais para baixo, um pouco mais de inclinação, até que um feixe de luz pura, intensa e afiadíssima incidiu no papel branco. Orgulhosa, relaxei e fiquei à espera. Bastou-me um pouco de paciência para ver então a magia acontecer-me nas mãos. Começou por ser um ponto negro libertando um fumo tímido e vagaroso. Depois abriu-se num buraco que ganhou vida própria e se foi expandindo no papel, diante do pasmo dos meus olhos. Mas no exacto momento em que a chama despertou, prova do meu sucesso, a minha avó materna surgiu na varanda, com as mãos na cabeça e o horror nos olhos.
- Ai, minha Nossa Senhora, que estás a fazer? Vais desgraçar-nos!
O susto foi-me uma mola. Num ápice soprei, abanei a folha de papel, atirei-a ao chão e calquei-a até apagar tudo. Não pensara que pudesse ser apanhada mas por certo a minha avó desconfiara do meu silêncio prolongado, habituada que estava a ouvir-me saltitar pela casa. Sabe-se: aquilo que nos adultos é sintoma de tranquilidade, nas crianças pode bem ser a evidência de um acto clandestino e frequentemente catastrófico. E para a minha avó, mesmo depois do fogo apagado, a catástrofe continuava iminente.
- Valha-nos Deus! Queres pegar fogo à casa e depois da casa vai o prédio todo, uma tragédia, que nos matas a todos! Não se brinca com o fogo, o fogo é o inferno, as chamas consomem tudo, dão cabo de tudo!
Chorosa e distorcida, deu a sentença:
- Só me dás consumições… Era quem te desse duas solhas nessa cara!
As solhas não cheguei a levar, que sou filha de gente pacífica e de mão contida. Mas depois da cena regressei ao quarto plenamente convencida de que aquela tinha sido a mais próxima visão do inferno que eu haveria de ter. Pelo menos até ao dia da morte, momento em que, fazendo fé na minha avó, os actos levianos têm o justo castigo.

Para minha felicidade, a três horas de viagem estava um mundo novo, um universo paralelo onde as verdades se reescreviam diariamente. Resgatada à gaveta onde vivia na cidade do Porto e onde a falta de liberdade me impelia à irreverência e ao fazer acontecer, chegada à Régua bastava-me esperar e tudo acontecia, não por magia mas por milagre.
Mantivesse os cinco sentidos em permanente alerta e a natureza revelava-se sem precisar de ser espicaçada com lentes de aumento. Aguaceiro, trovoada, mosto, tília, terra, bicharada, não que não os houvesse na cidade, mas aqui tinham a sua justa moldura, que realçava cores, aromas e texturas. Dois mundos distintos, avessos um do outro, por onde eu me dividia com ânsias e prazeres igualmente distintos. 
Mornas, as noites de Agosto apeteciam. E a lassidão que sobrava nos corpos depois do jantar inspirava a prosa relaxada da família reunida no pátio, debaixo das estrelas e do frenesim da mosquitada. Do que falavam os adultos não recordo, porque ocupações próprias da idade absorviam a minha atenção, mas tenho presente uma saudável alternância entre o riso e a seriedade, o quotidiano e o intemporal. À volta, tudo era imensidão, abundância de aromas, sombras que a imaginação deformava, rumores de pequeníssimas vidas que despertam quando a luz morre.
Foi numa dessas noites de Agosto, meu paraíso, que tive a primeira visão do inferno concreta e terrena, diante de mim. A tranquilidade do serão familiar foi interrompida pelo aviso de que havia fogo, para Sul. Apontavam: era além, ao fundo, antes mesmo da concha onde as luzes da cidade se aninhavam. Num salto nos erguemos, descemos as escadas, passámos o portão e subimos a calçada para ver melhor. Entre nós e o fogo estendia-se um imenso e geométrico tapete de vinhedos. Estávamos longe, mas outros estariam perto.
Miúdos e graúdos agitados, exclamações de surpresa, suspeitas, perguntas. Eu, pequena e ignorante de causas e consequências, abrigada nas curvas suaves do corpo da minha mãe, sem saber se havia de me espantar ou de me horrorziar, se era mais certo ajoelhar-me ou tapar os olhos.
Os homens tranquilizam pela palavra, as mulheres pelo corpo, e não há feminismo capaz de subverter esta verdade. Quando do homem se espera um discurso, um desfiar de argumentos que ponham os pontos nos “i”, os pés no chão e a cabeça na ordem, à mulher basta um gesto. Colo, braço, mão, ligeiro virar da cabeça, peito disponível, condescendência do olhar, reorganizam as emoções e põem o mundo inteiro a salvo. Por isso, enquanto eles debitavam suposições sobre a origem do fogo e o seu exacto local, analisavam a direcção dos ventos e sentenciavam desfechos, elas, sem esconder o temor e a aflição, aconchegavam-se e aconchegavam os mais novos.
Gulosas, as labaredas cresciam para onde houvesse alimento. E se o havia! Agosto, seco e abafado, é um banquete. Em nada aquilo se comparava à chama tímida que eu provocara na varanda do Porto e que extinguira como quem mata um insecto. E na escuridão da noite, o fogo ganhava uma presença assombrosa, iluminava os céus, ofuscava a cidade, deformava o horizonte. Como um animal possante, aceso de raiva, atiçado por um poder mágico e superior.
Mentiria agora se dissesse que a seguir ouvi as sirenes e vislumbrei ao longe a heróica batalha dos bombeiros contra o fogo, munidos de instrumentos, armados de coragem. Precisaria da imaginação em que sou pobre para os detalhes dos seus gestos, dos seus destemidos avanços e prudentes recuos, do frenesim, do medo e das hesitações. Onde iria eu buscar a ideia que não tenho de certos cheiros, das visões esfumadas, de uma fornalha viva e gigante, da persistência para além de toda a desorientação? Fica assim a faltar nesta história o climax, a tensa e magnética descrição de horrores que normalmente precede o regresso da harmonia e os finais felizes. É que, mesmo esgravatada a fundo, a minha memória não colaborou. Mas sei que o que não recordo nem sei ficcionar aconteceu, porque a manhã seguinte acordou mansa e pura como todas as outras e dos céus não havia caído uma única gota de chuva.
Como ao longo da vida comprovei, o inferno vai acontecendo por aqui, na terra, nas encostas, nas aldeias, às vezes entre quatro paredes, provocado pela explosão, o erro, o crime, a cegueira e tudo o mais que inflama e consome. Mas, com a mesma força e superior vontade, Deus usa o corpo e o coração de certos homens, despertando-lhes a coragem e afinando-os em generosidade, para que a natureza continue a ser um ventre fértil que perpetue o paraíso.

Olga Magalhães

1 comentário:

  1. Sou fã da escrita da Olga. É um privilegio poder lê-la.

    ResponderEliminar