terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O velho carreiro

O carreiro Peche

Depois disso, o velho carreiro, de mãos nos bolsos, caminhar de títere e olhar distante, arrastava-se, sumido, pela aldeia. Falava sozinho, como se o seu boi ainda o levasse na chiadeira da sonolência, mal respondia a um cumprimento e só comia o que lhe davam. Nunca pedia, embrulhado na resignação, mas muitos não lhe negavam uma ajuda. Andava dias e dias fora de Lobrigos, de feira em feira, à procura de um boi igual ao seu, que nunca encontrava e, que encontrasse, nunca poderia comprar, regressando sempre de olhos alagados. Diziam que enlouquecera, deixara de fazer a barba nas manhãs de Domingo, os joelhos ao léu nas calças de cotim, camisolão desgolado, a boina num benairo de sebo, os polegares saídos das botas. Um dia, alguém o chamou e o vestiu com umas roupas dispensáveis. Houve quem se risse, chamaram-lhe doutor e faia. Por pouco prazo. Retiraram-no da palha e enterraram-no, por misericórdia, no cemitério do Espírito Santo, numa tarde de Janeiro, quando a luz do dia se escapava por entre os socalcos. Quando lá vou falar com os meus, bem queria saber da sua campa. Já procurei e perguntei por ela, mas ninguém me sabe dizer. Nem uma palavra, nem uma letra. Sei-o ali, abandonado num canto qualquer, a dizer-me que a grande riqueza das pessoas é a boa recordação que deixam.


















 M. Nogueira Borges, in  "LAGAR DA MEMÓRIA"

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