domingo, 22 de dezembro de 2013

Está uma tarde do Bornéu...




"Meu pai foi um leitor incansável. Todas as imagens que dele guardo me perpassam na memória de livro na mão.Quando estava muito frio, lia na cama até tarde e às horas mortas da madrugada. Ficava apenas fora da roupa a cabeça até aos olhos e dois dedos de cada mão para segurar o livro. Como se protegia com uma grande boina galega, pouco de meu pai ficava à vista. A linha do lençol sublinhava-lhe os olhos claros perdidos no livro.
Nas pausas de escrever, também lia muito no escritório, afogado numa poltrona ou, no verão, a baloiçar-se numa cadeira de palhinha. Esta cadeira de baloiço era muito disputada pelos meus irmãos, na idade de peguilhar por tudo e por nada.
Quando a primavera corria amena e o verão tardava em dardejar a Régua, meu pai gostava muito de ler no terraço das trazeiras, diante da sua montanha, protegido por um dossel de glicínias. A sua montanha é a que sobe do vale de Jugueiros à cumeada de Loureiro.Vezes sem conta o vi levantar os olhos do livro ou do jornal para os perder naqueles vinhedos pontilhados de quintas e povoados.
Nas tardes de verão, em que na Régua não há  para onde se posa fugir ao calor, meu pai lia num cadeirão do consultório, na pausa e no fim dos doentes. Chamava àquela cadeira a minha praia e às tardes mais escaldantes tardes do Bornéu .
- Está uma tarde do Bornéu...Vou até à minha praia."

Camilo de Araújo Correia

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