Foto: josé alfredo almeida |
Vivi muitos anos
E outros eu viveria
Meu tempo chegou ao fim
Morro nesta casa em ruínas
O tempo passou...
Mas lembro-me bem.
Quem passou e olhei
Um sorriso de uma criança
As conversas dos vizinhos do lado
Os queixumes de um velho reformado
Não me esqueci de ninguém....
Aqueles que passaram
Na luz da Primavera
Quando as andorinhas riscavam o azul do céu
Em direcção ao rio.
E voltavam, voltam num voo rápido
E faziam nos ninhos nos beirais desta casa...
Era moda passar no Cimo da Régua
Compras roupa elegantes no Caeiro
Ou boas fazendas nos balções dos Fortunatos
Tomar um café ou um chá no Nacional
E mais tarde passar na Flor do Adro.
Nunca daqui saí para nenhum lado
Mesmo quando chegava o verão...
Que calor, dias dias de inferno
Até o ar me faltava
E o corpo queria sentir a brisa do rio
E eu tinha tanto calor....
Daqui via passar os comerciantes,
os homens dos negócios
Aquele era Filipe Soalheira da Sapataria
Olha, ali ainda O Idalino da Lotaria,
Nunca me saí nenhum número da sorte grande
E a lotaria da Páscoa e do Natal.
Metia-me à conversa com o filósofo" Arnaldo Marques.
Era um velho um profeta..
Falava do seu passado e advinha já o futuro
Admirava aquele sonhador das madrugadas,
que só conhecia o caminho de casa para a mercearia.
Parece que já morreu.
Vivia numa casa no Largo Cruzeiro.
Era um homem bom.
Partiu na velhice e ninguém dele se lembra
É a vida....!
Tenho pena de não lhe poder dizer o último adeus.
Daqui passar muitos lavradores
com o rosto caído e fechado
Como as suas vinhas
E os preços do vinho.
Diziam que os exportadores pagavam cada vez menos...
Só ouvia falar de crises e de miséria...
E que a Casa do Douro estava perto do fim...
Lembro do dia 15 de Agosto....
Das festas do Socorro...
E eu aqui passei por tantas...
As ruas sempre cheias de gente.
A procissão a passar .
O último andor era o da Senhora do Socorro...
E todos diante dela se ajoelhavam
E rezavam com fé e devoção....
Eu punha uma colcha vermelha
Quando a banda anunciava a sua passagem
E me curvava de respeito
E rezava a minha oração...
E a noite do arraial....
Que beleza!!
Que espectáculo de cores
E de luz...
Eram outros tempos...
Era uma janela nova...
Com muitos sonhos e ilusões...
Todos aqui vinham deitar os seus olhares...
Daqui eu muito vi
E vivi...
E uma vez me apaixonei.
E muito sofri
Como os adolescentes apaixonados..
Estou ainda a vê-los passar
De mãos dadas e corações presos
Ele com um camisola verde...
e um olhar de ternura infinita.
Ela com um vestido cor de rosa
e corpo a despertar desejo.
Passaram tantas vezes....
E nunca mais os vi juntos.
Nada mais soube da deles.....
Quando o Outono chegava, eu gostava do cheiro a mosto.
Que me inebriava os sentidos e os desejos....
Era o tempo das vindimas....
Dias felizes...
E, em meu redor, muita beleza e cor nas vinhas.
Também eu chorei
Quando morriam os vizinhos e amigos.
Entre os cortinados, via passar os enterros....
A caminho do cemitério do Peso...
Ficava de luto e recolhia-me no meu lar.
Onde sentia paz e segurança....
Quando ao anoitecer
Chegavam as crianças da escola
E o amor...acontecia!!
E todos ficávamos acordados
Diante do fogo de uma lareira....
Quando o frio de Dezembro apertava mais
E muito chovia em Janeiro.
Lá vinhas as cheias do rio.
E quando à agua chegava à marginal
Chamavam os bombeiros...
Meu tio era um voluntário, desses da velha guarda.
Conta-me tudo quando vinha descansar
As ruas ficavam vazias e desertas.
Eram dias cinzentos e tristes
Ao meu olhar indiscreto
Que pensava em mais uma primavera.
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Hoje, sou uma velha janela
Quase inútil.
Mesmo fechada em mim.
Não me interessa ver mais nada!
O que vivi já contei.
O resto ainda por dizer
São os meus segredos...
De amores perdidos ...
Que eu vivi.
Mas quer aqui morrer.
E, um dia, regressar
Para voltar a ver...
Esta que é minha terra!
José Alfredo Almeida
Uma bonita crónica. BOAS e DOCES LEMBRANÇAS que perduram na memória e nos fazem sorrir, VIVER! :)
ResponderEliminarUma história duma janela já velhinha com recordações e muitas emoções
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