Foto: josé alfredo almeida |
"- Foi no Verão de setenta e dois – disse – Entrou-me um miúdo, uma
manhã, e pôs-se a roubar coisas na loja. Devia ter aí uns dezanove,
vinte anos, e acho que nunca tinha visto na minha vida um ladrão com
tanta falta de jeito. (..) Assim que percebi o que é que ele estava a
tramar, pus-me aos gritos. Ele largou a correr que nem uma lebre. Fui
atrás dele aí até meio do quarteirão, e depois desisti. Ele tinha
deixado cair qualquer coisa no caminho, e como já não me apetecia correr
mais, baixei-me para ver o que seria.
Acontece que era a carteira dele. Não tinha dinheiro, mas havia a
carta de condução dele e mais umas três ou quatro fotografias. Acho que
podia ter chamado a polícia e tê-lo mandado prender. Tinha o nome e a
morada na carta de condução, mas tive um bocado de pena dele. Era um
desgraçado, todo marcado das bexigas e assim que olhei para as
fotografias que trazia na carteira, já não consegui sentir-me muito
zangado com ele. Robert Goodwin. Era o nome. (…)Um miúdo pobre de
Brooklyn sem grandes perspectivas e qual era a importância de dois
livros de bolso merdosos?
Portanto, fiquei com a carteira. E então chega o Natal e eu fico sem
nada que fazer. (…)E eu estou em casa, nessa manhã, e sinto-me um
bocado em baixo, com pena de mim, e vejo a carteira do Robert Goodwin
numa prateleira da cozinha. E penso, olha, c´o catano, já agora porque
não faço uma coisa bem feita, só desta vez, e visto o casaco e saio para
ir devolver a carteira em pessoa.
A morada era ali para Boerum Hill, algures na zona da habitação
social.(…) Mas pronto, finalmente lá chego ao andar que procurava e toco
à campainha. (…) Uma voz de velha pergunta quem é, e eu digo que ando à
procura do Robert Goodwin.
- És tu, Robert?- diz a velha, e desaferrolha aí umas quinze
fechaduras e abre a porta. Tem uns oitenta anos no mínimo, talvez mesmo
noventa, e a primeira coisa em que reparo é que ela é cega. – Tinha a
certeza de que virias, Robert – diz ela. – Sabia que não ias esquecer a
tua avó Ethel no Natal. – E abre os braços como se me fosse abraçar.
Não tinha muito tempo para pensar, compreende. Tive de dizer logo
qualquer coisa, e antes de tomar consciência do que se estava a passar,
ouvi as palavras saírem-me da boca.
- É mesmo, avó Ethel. – disse – Voltei para a ver no Natal. Não me
pergunte por que o fiz. Não faço ideia nenhuma. Talvez não quisesse
desiludi-la ou coisa assim, não sei. (…)
Não lhe disse exactamente que era o neto dela. Ou pelo menos não lho
disse com todas as letras, mas ficou implícito. Não estava a tentar
enganá-la. Era uma espécie de jogo que tínhamos decidido jogar os dois –
sem ter de discutir as regras. Ou seja, a mulher sabia que eu não era o
neto dela, o Robert. Estava velha e um bocado cheché , mas não estava
assim tão passada para o outro lado que não soubesse a diferença entre
um estranho e a carne da sua carne. Mas estava toda contente a
fingir.(…)
Portanto, entrámos no apartamento e passámos o dia juntos. De cada
vez que me perguntava como é que eu estava, mentia-lhe. Disse-lhe que
tinha arranjado um emprego numa tabacaria, disse-lhe que me ia casar,
contei-lhe uma novena de histórias bonitas, e ela fazia de conta que
acreditava em tudo.
(…) A Ethel tinha umas duas garrafas de vinho escondidas no quarto e
juntando tudo lá conseguimos atamancar um jantar de Natal bastante
decente. Ficámos os dois um bocadito tontos com o vinho, lembro-me eu, e
quando acabámos de comer fomo-nos sentar na sala, onde as cadeiras eram
mais confortáveis. Tive de ir fazer chichi, pedi licença e fui à casa
de banho ao fundo da entrada. Foi aí que as coisas deram outra
reviravolta. Já era um disparate pegado estar para ali com aquela cena
de me fazer passar pelo neto de Ethel, mas o que eu fiz a seguir foi
completamente louco, e nunca mo perdoei.
Entro na casa de banho, e empilhadas contra a parede ao lado do
chuveiro, vejo umas seis ou sete máquinas fotográficas. Máquinas de
trinta e cinco milímetros novinhas em folha, ainda nas caixas,
mercadoria de primeira. Percebo que isto é obra do verdadeiro Robert, um
lugar onde armazenou os roubos mais recentes. Nunca tinha tirado uma
fotografia na vida, e nem por sombras alguma vez tinha roubado alguma
coisa, mas assim que vejo as máquinas ali na casa de banho, decido que
quero uma para mim. E sem sequer parar para pensar, meto uma das caixas
debaixo do braço e volto para a sala.
Não demorei senão uns minutos, mas nesse tempo a avó Ethel adormecera
na cadeira. Demasiado Chianti, acho eu. Fui à cozinha lavar os pratos, e
ela continuou a dormir com aquela barulheira toda, ressonando como um
bebé. Não havia razão para a incomodar, e decidi ir-me embora. Nem
sequer podia escrever uma notazinha a despedir-me, já que ela era cega, e
portanto, saí, sem mais nada. Pus a carteira do neto dela em cima da
mesa, peguei outra vez na máquina, e saí do apartamento. E é o fim da
história.
- E voltou lá alguma vez, para a ver ?- perguntei.
- Uma vez – disse ele – aí uns três ou quatro meses depois. Senti-me
tão mal por ter roubado a máquina, que nem sequer a tinha usado ainda.
Finalmente decidi-me a devolvê-la, mas a Ethel já lá não estava. Não sei
o que lhe aconteceu, mas alguém se mudou para o apartamento, e não me
soube dizer onde é que ela estava.
- Provavelmente, morreu.
- Sim, provavelmente.
- O que quer dizer que passou o último Natal dela consigo.
- Acho que sim. Nunca tinha pensado nisso.
- Foi uma boa acção, Auggie. Foi uma coisa bem feita que fez por ela.
- Menti-lhe e depois roubei-a. Não percebo como é que lhe pode chamar uma boa acção.
- Fê-la feliz. E, de qualquer maneira, a máquina era roubada.
- Tudo pela arte, não é, Paul?
- Não diria tanto. Mas ao menos deu um bom uso à máquina.
- E agora já tem a sua história de Natal, não é?
- É – disse eu. – Acho que sim.
Fiz uma pausa, a observar o Auggie, enquanto um sorriso malandro se
lhe espalhava na cara. Não pude ter a certeza, mas a expressão dos olhos
dele nesse momento era tão misteriosa, tão cheia do brilho de um
deleite interior, que de repente me ocorreu que ele tivesse inventado
aquilo tudo. E ia perguntar-lhe se ele me tinha estado a gozar, mas
percebi então que nunca mo diria. Tinha sido levado ao engano a
acreditar nele e era a única coisa que tinha importância. Desde que haja
uma pessoa que acredite, não há história que não possa ser verdadeira."
Paul Auster, “A História de Natal de Auggie Wren”
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