"José Alfredo Almeida enviou-me uma fotografia de um rosto de Cristo
pintado por Afonso Soares. Sem ter disso a certeza, penso que se trata
de um estudo ou cópia a partir de uma pintura do século XVIII,
provavelmente espanhola, mas invoco aqui esse quadro porque não vejo
nele qualquer inabilidade técnica. Pelo contrário, trata-se de uma
pequena obra que demonstra que Afonso Soares era capaz de pintar como
pintavam os artistas académicos.
Nestas circunstâncias, torna-se
ainda mais pertinente averiguar porque não pintou assim os seus
retratos. Uma primeira pista poderá residir no facto de terem sido
executados a partir de fotografias (como, aliás, todos os retratos da
coleção, segundo Tomé Duarte). A fotografia é inerte. Está ali, à frente
do pintor, sem respirar, sem trocar duas palavras, sem sorrir... ou sem
deixar de sorrir. É normal que resulte em retratos menos ricos em
sugestão.
Regresso adiante ao problema da fotografia mas adianto
desde já que esta explicação não me parece totalmente convincente. Não
creio que a rigidez dos retratos pintados por Afonso Soares resulte por
inteiro do facto de se terem baseado em fotografias. Afinal de contas,
também o foram os retratos de outros pintores na coleção, que são muito
mais “naturalistas” que os de Soares.
Proponho dois conceitos para podermos pensar este problema: o conceito cristão de ícone e o conceito hindu de darshan.
Podemos relacionar entre si estes conceitos (como alguns estudiosos nos
ensinaram). O ícone, criado pelo cristianismo oriental há mais de mil e
quinhentos anos a partir de precedentes romanos e orientais, e ainda
dominante no culto das igrejas Ortodoxas, é uma imagem de Cristo, de
Nossa Senhora ou de Santos, que se caracteriza, como se sabe, pela sua
frontalidade, rigidez, olhar fixo e inexpressivo. O conceito hindu de
darshan, por seu lado, dá conta do exercício espiritual praticado pelo
devoto que consiste em olhar longamente uma imagem sagrada que, não
tendo qualquer expressão que suscite empatia, permite, por isso mesmo,
que o devoto se “perca” na contemplação.
Como se percebe, é
precisamente porque o ícone cristão ou a imagem sagrada hindu não
“dialogam” com o observador que este pode ficar como que hipnotizado por
elas, mergulhando no darshan que caracteriza a sua força espiritual.
Neste momento, poderão estar os leitores a dizer para si mesmos que não
tem qualquer cabimento ou lógica invocar estes conceitos e precedentes a
propósito de um retratista amador de Peso da Régua na primeira metade
do século XX.
Mas, agradecendo antecipadamente a paciência do leitor, peço-lhe que regressemos então à fotografia.
Quando apareceu no início do século XIX, e até à sua democratização
tecnológica e económica, a fotografia revalidou o conceito de ícone. De
facto, a fotografia exercia um efeito-darshan, deslumbrando o olhar
indefeso do observador através da crença, como que sagrada, de que em
cada imagem fotográfica há um vestígio verdadeiro da realidade,
incluindo da realidade que já passou. Como se sabe, certos povos ditos
“primitivos”tinham um verdadeiro pavor da fotografia porque acreditavam
que esta lhes capturava o espírito e podia fazer regressar os mortos,
mas até as pessoas mais “civilizadas”que, no século XIX, lidavam com a
fotografia começaram por olhar para as imagens de uma maneira pouco
utilitária, quase mística. Os homens e mulheres que posavam para a
fotografia nessa época tinham consciência da operação “mágica” em que
estavam envolvidos: a sua verdade ia ser transposta para uma película
foto-sensível. Até há relativamente pouco tempo, como demonstraram
alguns trabalhos de antropólogos, os indianos das classes populares
faziam rodear o acto de tirar um retrato de inúmeras precauções: o olhar
tinha que ser frontal, as mãos tinham que ficar à vista, a roupa devia
ser de cerimónia, etc. Basta conhecer-se superficialmente o retratismo
fotográfico ocidental do século XIX para nos apercebermos que as coisas
também se passavam assim nestas partes do mundo.
Ou seja: Afonso
Soares, como todos os outros pintores, trabalhou com retratos-darshan e
retratos-ícone, mas só ele permitiu que essas características passassem
para a sua pintura, ao contrario dos seus colegas que procuravam impedir
os seus quadros de se parecerem com fotografias. Sendo mais “inábil”,
Afonso Soares foi afinal mais moderno.
Recorde-se que os modernistas
admiravam as artes primitivas, mas também que o naturalismo e o
realismo não foram as únicas correntes da pintura do século XIX e do
início do século XX. No quadro da pintura religiosa manifestava-se
frequentemente a tendência para recorrer a modelos “primitivos” (a
pintura do século XV e até os ícones bizantinos). Estes pintores
acreditavam que só esses modelos podiam suscitar a verdadeira devoção
dos crentes, justamente porque não eram “realistas”.
No pequeno
artigo que escrevi para o Público, referi a propósito de Afonso Soares
um retrato de crianças executado pelo pintor alemão Otto Runge
(1777-1810). É muito interessante o contraste que existe na obra de
Runge entre os retratos de adultos, que são absolutamente “normais”,
quer dizer, são retratos psicológicos à maneira moderna, e os retratos
de crianças, nas quais Runge detectou de maneira particularmente
incisiva a inexpressividade bruta que estas por vezes apresentam, o seu
alheamento interior. Runge contesta a representação das crianças como
pequenos anjos, então vulgar, e apresenta-as enquanto verdadeiros
alienígenas, seres estranhos, para os quais não havia convenções de
representação. Esta inquietante familiaridade é precisamente aquela que,
creio eu, transparece nos retratos de Afonso Soares.
Procurei neste
artigo pensar a pintura de Afonso Soares fora da antinomia
académico-amador que se torna uma verdadeira armadilha se nos impedir de
olhar para os retratos de uma maneira ao mesmo tempo histórica, situada
na sua época, e trans-histórica, quer dizer, atravessando toda a
história das artes. E sobretudo se nos impedir de desfrutar da
inquietação que os singulares retratos de Soares provocam em nós."
Paulo Varela Gomes
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