sábado, 19 de abril de 2014

Eremitério

Fernando Guichard

"Ausente desde menino, venho morar na mesma rua onde me criei e onde era a minha escola primária. Das janelas do meu quarto, ao erguer-me, descubro o mais gracioso e majestoso panorama que eu ainda gozei, aos anos que conto e ao que tenho visto, com magras posses, no meu país encantado. Linda vista! Breve porém os olhos, desgarrados por longe, voltam ao perto e poisam na velha figueira do meu antigo quintal, onde me eu à tarde empoleirava com a merenda e um livro que se perdeu, da abreviada livraria de meu pai, e se chamava Feixe de Versos. Que saudade! Escrevo estas palavras ociosas por descargo de alma, só para arrumar um sentimento que me estorvaria decerto outros cuidados mais sérios.
A Régua! Está a mesma, como eu a deixei - onde vai isto! - há que mundos, numa tarde de Outubro, estavam as vinhas a tingir-se de um arroxeado de morte... 
Eu ia para o colégio... Volto diverso e a vila é irmã da que ficou. As mesmas casas, as mesmas ruas. Só uma diferença noto, nesta íngreme via de Medreiros, a mesma onde me criei e onde era a minha escola primária. Onde estará o meu mestre, o sr. Zezinho, que todos os dias cortava um vergueiro no quintal - só com um vergueiro, dizia - para desorelhar os rapazes?
A Rosinha do Carvão, que, pelo Socorro, vinha à porta no carro de entrevada, velhinha e branca como uma pomba ou uma santa, ver passar a Senhora, Já nem terá ossos." (...)

João de Araújo Correia in "Sem Método"

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