terça-feira, 29 de abril de 2014

Crónica do Douro




"Os olhos de um homem das lezírias habituados a varrer distâncias, mal aqui chegam parecem achar pequenas as dimensões que lhes deixam para viver. Fica-se com a vaga noção de que se abrem os braços quando se viaja num rabelo, em baixo, na vertigem das descidas dos pontos ou nas penosas ascenções por fragas sem conta, as mãos serão capazes de tocar nos limites do horizonte, tacteando as vertentes das montanhas que sobre o rio se querem despenhar.
Depois, a pouco e pouco, percebe-se que para além daqueles montes, há outros e outros, adivinhados de vez em quando no acastelamento dos cumes. E ao chegar o instante do pormenor, aqui no Douro, o homem das lezírias repara deslumbrado que cada monte é uma medida larga de horizonte, se os olhos  se entretêm a desfiar o emaranhado dos socalcos e a concebê-los  num plano, bardo a bardo, valeira a valeira, e criado depois disso todo o esforço necessário para  vencer aquele monte a pólvora e a marra, até lhe dar a terra onde as videiras se contorcem em espasmos de folhagem e cachos, tão ricos de doçura e cor que os durienses dizem darem os seus bagos o melhor vinho do mundo. Talvez assim seja. E se a dúvida pode surgir perante a afirmação, ela não ficará se se disser que nenhum outro vinho exige tanto do homem para chegar ao cálice, que nenhum outro é feito a poder de maior bravura e de tais sacrifícios.
O adagiário da região exprimiu essa certeza que "ainda que entres na vinha e soltes o gabão, se não trabalhares, não te darão pão". E é nisto que o homem das lezírias se encontra com o duriense; é por isso, certamente, que o Douro parece a minha segunda pátria e nela me vou reconhecendo quanto mais o seu contacto me toca.
Já os olhos não acham curtas as distâncias dos limites, porque cada monte é um santuário de trabalho humano, e nunca pedaço de natureza me entusiasmou mais do que a peça mais insignificante em tamanho feita pela mão do homem - seja de um boneco dos barros de Barcelos ou Estremoz, uma foice ou um saleiro de cortiça. E  então se a tarefa exigida comporta o heroísmo do cavador ou do valador do Ribatejo, dobro-me maravilhado de agradecimento por pertencer a esta espécie que se tem dado tiranos, ociosos e ladrões de esforço alheio, também pode oferecer homens da tempera daqueles, um conquistando terras às fragas, outro ganhando terras ao Tejo - um e outro justificando uma oração, como exemplos vivos de todo o conjunto dos seus obreiros ignorados.
E as duas regiões tão diferentes à primeira vista, são irmãs como nenhumas outras, feitas ambas pela mão do homem, argamassadas em duas nas maiores tragédias nacionais - uma pelas suas cheias, outra pelas suas epidemias que atacam a videira, como essa da filoxera que deixou o Douro varado de angústia,  e mesmo assim o não venceu,  embora em muitas montanhas os "mortórios" recordem hoje o que teria sido essa catástrofe que destruiu todas as videiras, calcinando-as, num país em que um cacho de uvas vale um mundo de promessas.
Depois ainda pelos semelhantes contrastes sociais, tão vivos no Douro como no Ribatejo - ao lado do palácio senhorial a choupana humilde.
E se uma tem as Portas do Sol, em Santarém, a Senhora  do Pranto ou o Monte Gordo, a outra, com mirantes em cada cume, tem horizontes mais amplos ainda, no alto da Rede e na bacia maravilhosa de cores que circunda a Régua, para o baixo Corgo, e lá para riba o Ermo e o Alto das Monteiras, ali perto do Pinhão que mais parece um cadinho onde se caldeiam gentes. No Ermo, em S. Salvador do Mundo, mesmo por cima do Cachão da Valeira que antes de D. Maria, foi último porto de rabelos e hoje se assemelha a uma catedral de nave única onde o Douro increpa e os " marinheiros" se arrepiam sempre de emoção, em S. Salvador do Mundo, desvenda-se a transição das terras de vinho para as de centeio e gados, aqui baralhadas ainda, já com raros socalcos de videiras, só vivas à mão do rio, porque mais para os cumes só os cereais e as oliveiras acham pé.
Mais escassos os xistos, vencedores quase absolutos os granitos duros, com montanhas despovoadas de gentes a caminho de Bragança ou de Mirandela. E o Douro em baixo, parece um titã adormecido, em curvas mansas, porque insignificante do alto do Ermo também parece o comboio que abre caminho entre a Alegria e a Ferradosa, e ele só passa por um longo túnel aberto na rocha, onde muitos homens deixaram a vida e milhares de outros rasgaram o peito.
O Alto Douro das vinhas está, porém, no Alto das Monteiras - quase seis quilómetros a subir, de junto da ponte do Pinhão,sempre entre  vinhas, na companhia de carvalhos e amendoeiras, pinheiros exóticos e eucaliptos, figueiras e alguns sobreiros descarnados.
A paisagem desenrola-se como num filme em que o espectador se movesse, e até ao alto, onde se acoitam javalis, sempre em perigos e vertigens, o país do vinho ali se oferece, tão exuberante de formas como franco de hospitalidade. E os olhos ficam tontos de tanta luz, de tão vasto horizonte e de tamanho poder de realização humana. Porque ali nada escapou à mão deste bicho insatisfeito que veio das cavernas, já tocou no céu, foi ao fundo dos mares e há-de chegar ao fundo de si mesmo para fazer uma vida que mereça ser vivida.
Busquem-se pormenores nesta feira de maravilhas, e se primeiro nos solicita pelo contraste, Valença a um lado, muito arriba também, mas mais baixa que as asas das aves e os socalcos, Favaios e Govães, Casal de Loivos e São-Fins, sempre à volta, de vertigem em vertigem, até à picada do rio onde os pontos farfalham espumas, ruídos e perigos, onde o Pinhão avulta numa simples figura geométrica pintada a várias cores, logo depois se avolumam e cobrem tudo, as varetas infinitas destes leques surpreendentes e gigantes que os geios goivam nas lombas e nos seios agressivos das montanhas, brandos umas vezes, em proas de barcos verdes, depois em promontórios arriscados e suspensões de ravinas, para a espaços se abrirem em coxins atapetados de mansas encostas, onde sempre nos sentimos insignificantes, e cada vez mais, a quanto mais alto subimos. Em montes mais crescidos, no nascente mergulhado ainda na sombra, por esta manhã de Agosto, o verde-escuro de pinheirais, logo em contraste com o cinzento  metálico dos olivedos, de que o duriense só compreendeu a virtude, depois do mal terrível da filoxera que neste pedaço se sente ainda, no castanho brando dos socalcos vazios, como ventres infecundos, onde tudo se mirrou talvez por muitos anos ainda. Mas o verde dos bardos, agora a chegarem-se  ao lagar, como sentindo já as ânsias das raparigas e dos rapazes das rogas que hão-de chegar cantando e dançando para atenuarem os cansaços das jornadas, esse verde predomina por todas as ondulações que se desdobram para onde a vista tropeça. Para o lado do nascente e sul o vale do rio Torto, guarida de vinhos famosos, tão célebres como os do Roncão que ficam para o norte, numa curva do rio que daqui parecia estagnado, se não fora o ponto da Roêda, com franjas brancas e sons lamentosos de um  carpir que só as espadelas dos barcos sabe imitar, ciciando desculpas junto da quinta do mesmo nome e que mais parece um museu do esforço do homem duriense. Como se trabalhasse a terra com goiva, os socalcos ou geios estão medidos numa tal harmonia de distâncias que talvez uma obra de arte não soubesse imitar. Já o disse uma vez e julgo merecer repeti-lo - que esta obra vale quantos monumentos se hão criado na terra."

Alves Redol, in revista Vertice, de Outubro de 1947

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