Nasci a Sul do Douro, num vale recheado de
vinhas, hortas, pomares e jardins. Cada família cuidava do seu punhado de terra
para colher o fruto do seu trabalho.
A cada instante, moradores ou transeuntes
contemplávamos, além Douro, as pinturas arrojadas, socorridas por um vasto
leque de cores nobres, a aconchegar um bordado de casinhas que, à nossa frente se
maneava de vaidade. Também as Caldas do Moledo agradeciam o panorama e a
semelhança da paisagem que a Penajóia oferecia aos seus olhares.
Nós, moradores da margem Sul, tínhamos Barcos
Rabelos, todos baptizados com nomes castiços. O do meu pai, Miguel Saavedra,
chamava-se “Marialva”. Todas as famílias tinham o seu barco Rabelo, não por
vaidade, mas porque era mesmo necessário. Não havia, nesta margem, estrada de
comunicação. Para nos deslocarmos às civilizações mais próximas como Régua,
Lamego ou para a estação dos Caminhos-de-ferro, enfrentávamos as ameaças do rio
sereno ou agitado. O barco ficava atracado nas margens das Caldas e ninguém
desrespeitava o parqueamento.
Lembro-me, e o meu caro amigo, José
Alfredo Almeida, também deve ter memória que, no improvisado “cais” das Caldas,
havia um tanque onde as mulheres, de joelhos, lavavam roupa. No mesmo local,
coravam e secavam e as crianças entretinham-se a brincar e a nadar enquanto as encostas
suavam os aromas do Verão. O cenário rural, mas caloroso de gentes, remetia-nos
à memória dos “trilhos da cultura popular portuguesa” de Chianca de Garcia com
a sua longa-metragem, Aldeia da Roupa
Branca. Porém, a nossa película tinha algo de diferente. O tanque, que se
acusava construído pela mão do homem, (atrevia-me a dizer de origem romana
pelas suas características de construção) era de água quente. Se existia mais
algum tanque junto ao rio, não tenho memória porque prendi o meu olhar, em
silêncio, a contemplar o emergir da água por um conjunto de pedras sabiamente
colocadas.
Ao lado deste, imensas crianças nadavam.
Nadavam sobre memórias que não fazem parte da minha história. Ainda me lembro da
eira, sobre a qual todos nadavam, sobranceira aos antigos tanques de águas
sulfurosas.
As duas margens entreolhavam-se das
varandas de um imenso espelho de água, de um rio cúmplice dos segredos por elas
partilhados.
Minha mãe, Ana Saavedra, testemunha a
existência de um lugar de banhos sob essa eira. Pequenos nichos de jacúzi natural borbulhavam a
vulcanização das águas ferventes, à qual a sabedoria do homem lhe soube
compreender poderes medicinais.
Salvaguardando a margem de erro, das
memórias que persistem a oralidade de gerações, ainda se ouvem ecos de que as
águas medicinais rumavam, pela obra de Deus, às terras das Caldas, provenientes
da outra margem. Segundo a minha mãe, essas águas apareciam nos terrenos da
casa com capela, contígua à Quinta do Lodoeiro. Vozes antigas crêem que essas
águas atravessaram serenamente e em segredo o Douro para desaguar nas Caldas. Emigraram
à procura de um Porto Seguro, de um Futuro próspero, de uma nova vida que, em
terras soalheiras, a Ferreirinha soube cuidar.
Hoje, as origens desses pequenos valores jazem
submersas num passado a preto e branco. Nunca mais ouvi falar dessas humildes
termas, geridas por banhistas, que outrora serviram o seu povo.
O lugar dos tanques, sob a eira, é dono de
uma história da Mãe Natureza. A moda do Património Mundial considerá-lo-ia como
local digno de ser legendado. Porém, nem uma humilde lápide a anunciar o
“eterno descanso” às velhinhas nascentes que envergam o leito do Douro como seu
último e único trajar.
6-07-2016
Lurdes Gomes
Não sei se deveria reconhecer Lurdes Gomes, apenas sei que sinto orgulho de perfilhar as mesmas emoções.Texto muitíssimo bem escrito! Parabéns!
ResponderEliminarBasta um punhado de sensibilidade para comungar as emoções e sentimentos de memórias. Habitei a outra margem do rio Douro mas, sempre considerei as Caldas do Moledo um dos monumentos que fundamentam a existência de uma história de vida. Obrigada pelo carinho com que acolheu estas minhas palavras.
ResponderEliminar