quinta-feira, 7 de julho de 2016

Memória submersa





Nasci a Sul do Douro, num vale recheado de vinhas, hortas, pomares e jardins. Cada família cuidava do seu punhado de terra para colher o fruto do seu trabalho.
A cada instante, moradores ou transeuntes contemplávamos, além Douro, as pinturas arrojadas, socorridas por um vasto leque de cores nobres, a aconchegar um bordado de casinhas que, à nossa frente se maneava de vaidade. Também as Caldas do Moledo agradeciam o panorama e a semelhança da paisagem que a Penajóia oferecia aos seus olhares.
Nós, moradores da margem Sul, tínhamos Barcos Rabelos, todos baptizados com nomes castiços. O do meu pai, Miguel Saavedra, chamava-se “Marialva”. Todas as famílias tinham o seu barco Rabelo, não por vaidade, mas porque era mesmo necessário. Não havia, nesta margem, estrada de comunicação. Para nos deslocarmos às civilizações mais próximas como Régua, Lamego ou para a estação dos Caminhos-de-ferro, enfrentávamos as ameaças do rio sereno ou agitado. O barco ficava atracado nas margens das Caldas e ninguém desrespeitava o parqueamento.
Lembro-me, e o meu caro amigo, José Alfredo Almeida, também deve ter memória que, no improvisado “cais” das Caldas, havia um tanque onde as mulheres, de joelhos, lavavam roupa. No mesmo local, coravam e secavam e as crianças entretinham-se a brincar e a nadar enquanto as encostas suavam os aromas do Verão. O cenário rural, mas caloroso de gentes, remetia-nos à memória dos “trilhos da cultura popular portuguesa” de Chianca de Garcia com a sua longa-metragem, Aldeia da Roupa Branca. Porém, a nossa película tinha algo de diferente. O tanque, que se acusava construído pela mão do homem, (atrevia-me a dizer de origem romana pelas suas características de construção) era de água quente. Se existia mais algum tanque junto ao rio, não tenho memória porque prendi o meu olhar, em silêncio, a contemplar o emergir da água por um conjunto de pedras sabiamente colocadas.
Ao lado deste, imensas crianças nadavam. Nadavam sobre memórias que não fazem parte da minha história. Ainda me lembro da eira, sobre a qual todos nadavam, sobranceira aos antigos tanques de águas sulfurosas.
As duas margens entreolhavam-se das varandas de um imenso espelho de água, de um rio cúmplice dos segredos por elas partilhados.
Minha mãe, Ana Saavedra, testemunha a existência de um lugar de banhos sob essa eira. Pequenos nichos de jacúzi natural borbulhavam a vulcanização das águas ferventes, à qual a sabedoria do homem lhe soube compreender poderes medicinais.
Salvaguardando a margem de erro, das memórias que persistem a oralidade de gerações, ainda se ouvem ecos de que as águas medicinais rumavam, pela obra de Deus, às terras das Caldas, provenientes da outra margem. Segundo a minha mãe, essas águas apareciam nos terrenos da casa com capela, contígua à Quinta do Lodoeiro. Vozes antigas crêem que essas águas atravessaram serenamente e em segredo o Douro para desaguar nas Caldas. Emigraram à procura de um Porto Seguro, de um Futuro próspero, de uma nova vida que, em terras soalheiras, a Ferreirinha soube cuidar.
Hoje, as origens desses pequenos valores jazem submersas num passado a preto e branco. Nunca mais ouvi falar dessas humildes termas, geridas por banhistas, que outrora serviram o seu povo.
O lugar dos tanques, sob a eira, é dono de uma história da Mãe Natureza. A moda do Património Mundial considerá-lo-ia como local digno de ser legendado. Porém, nem uma humilde lápide a anunciar o “eterno descanso” às velhinhas nascentes que envergam o leito do Douro como seu último e único trajar.

6-07-2016
Lurdes Gomes

2 comentários:

  1. Não sei se deveria reconhecer Lurdes Gomes, apenas sei que sinto orgulho de perfilhar as mesmas emoções.Texto muitíssimo bem escrito! Parabéns!

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  2. Basta um punhado de sensibilidade para comungar as emoções e sentimentos de memórias. Habitei a outra margem do rio Douro mas, sempre considerei as Caldas do Moledo um dos monumentos que fundamentam a existência de uma história de vida. Obrigada pelo carinho com que acolheu estas minhas palavras.

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