terça-feira, 26 de julho de 2016

Como se faz uma estrela




Meu avô era homem metódico. Se eu saísse a ele...Eu sou desarranjado. Meu avô era todo simetria, compasso, ordem.Não gostava de árvores, porque as árvores, infelizmente - infelizmente para o meu avô, não  eram como ele queria: feitas à régua, sobre papel, com troncos quadriláteros e igual número de ramos à direita e à mesma esquerda. Toleravas as pereira educadas contra os muros - como feitio de candelabros. Soltas no campo, desgostavam o meu avô. Fechava as janelas, e entretinha-se, dentro de casa, a construir um mundo geométrico. Cismava em tocar velhos quadros, tornando-os impecáveis de recticidade, quando sucedeu o episódio que vou narrar.
Os garotos da minha rua lançavam ao ar estrelas de papel - era na Primavera. Cada estrela, feita de jornal velho, tinha um rabo comprido, de guita, com farrapos amarrados de espaço a espaço até à ponta. A esses farrapos chamavam charutos.
Coisa grotesca, uma estrela! Coisa grotesca antes de subir. Vista no chão, era um horror. Via-se-lhe o grude às pastas, o grude de sapateiro com que a tinha grudado o dono do aborto - um garotinho. Uma estrela, vista no chão, era um mostrengo. Vista no ar, o nome o dizia, era uma estrela.
O ar da Primavera, muito buliçoso, sacudido de brisas e ensaboado de sol, lavava-a lá lá em cima, tirava-lhe as imperfeições do grude, dava-lhe o aspecto de jóia mergulhada em água clara. Uma beleza...
Os rapazes da minha rua tinham jeito e mais que jeito para a fazer subir. Tinham habilidade. Pegulhos de sete anos deitavam uma, das pequeninas, na ponta da unha. Matulões compridos como castinceiros arrumavam a sua às alturas e aí a sustinham com olímpico orgulho.O céu da minha terra, naquelas tardes primaveris, era um lago azul picado de estrelas.
Eu e os meus irmãos víamos  isto, esta competição de astros de papel, e resolvemos fazer também a nossa estrela para a tirarmos ao vento do nosso quintal. Pegámos em jornais velhos, em canas, em farrapos, em grude e em barbantes.A estrela ficou pronta em menos de um credo.
Íamos deitá-la para o quintal quando o nosso avô, abrindo a janela do quarto onde construía o mundo geométrico, nos chamou aos berros.
-Luís! Francisco! André! Sancho! Que é isso?
-É uma estrela, avô!
-Uma estrela? Isso não é estrela. Vós não sabeis fazer uma estrela. Vinde cá!
Subimos. E levámos a estrela. Meu avô - o nosso avô -, encarando nela, fez uma careta como se sentisse uma dor súbita. A picada de uma víbora não o teria  transtornado tanto. 
-Então isso é uma estrela? Feita sem compasso? Pesada, com papel de jornal...que horror!
Deitai isso fora. Eu é que vos vou ensinar a fazer uma estrela.
Deu-nos dinheiro para papel de seda. Fomos comprá-los à tenda da esquina. Quando regressámos, vimos o nosso inclinado sobre uma grande mesa, a olhar para um compasso. À direita, vimos uma régua. À esquerda, um compasso e uma navalha aberta muito afiada.
-Em primeiro lugar, precisamos de preparar as canas.
-Servem as da estrela velha, lembrámos.
-Não!
Fomos a um canavial por elas. Quando as trouxemos, o meu avô mirou-as e remiro-as desconfiado. Nenhuma lhe parecia direita, bem sã. Escolheu duas -as que lhe pareceram sofríveis. e pôs-se à obra. Estonou-as, limpou-as e puliu-as  a preceito. Ficaram lisas e brilhantes como a folha da navalha, mas, gastou nesse empenho mais tempo do que nós a fazer de cabo de rabo a estrela velha.
Meu avô adorava os trabalhos niquentos, chineses -as miniaturas que exigem mão pequenina animada de paciente fervor. Se o trabalho fosse fácil como a construção de um barco de papel, eriçava-o de dificuldades miúdas como areia para lograr a boa ventura de as vencer. O ideal do meu avô, em artes mecânicas, seria a construção de um relógio de pulso com a sombra do buraco de uma agulha.
Depois de limpas as canas, meu avô abriu-as ao meio e desbastou-as até as reduzir a talas tão finas, que um cirurgião do céu as aplicaria em fracturas de anjos.
-Isso não sobe, avô!, exclamou o meu irmão Sancho, que era atrevido.
-Cale-se! Você não sabe fazer uma estrela. No fim se verá se sobe ou não sobe, Senhor Sancho...
Continuou na exímia tarefa. Cruzou as canas, uniu-as com fios de seda, fez uma espécie de teia de aranha tão subtil, que ficou satisfeito.
-Ide passear agora. Amanhã continuaremos.
Era quase noite quando saímos do quarto do avô - cada um de nós com a sua ideia a respeito dele e da resolução que tomara de nos fazer uma estrela. 
-Não sobe, repetiu o meu irmão Sancho, que, além de atrevido, era casmurro.
No dia seguinte, lá estávamos no quarto do avô.
-Agora, vamos pôr o papel.
Fixou como goma arábica muito loira. Depois, mereceu-lhe especial cuidado o órgão estrelar a que chamava compasso: três pilares de guita convergentes no ponto em que viria a unir-se o fio da estrela.
-O compasso é o coração da estrela. Se for mal feito...
Mal feito? Meu avô era incapaz de uma imperfeição. O compasso ficou um brinco. O rabo, não se fala. Parece que o pesou  numa balança de boticário. De leve, agitou-se no quarto do avô, quis sair pela janela fora agarrado à estrela.
-Que linda!, exclamámos todos excepto o Sancho, que não olhava a belezas. Era também utilitário.
-Que linda!, repetíamos.
Bem linda! Podia-se pôr numa vitrina de modas, entre blusas de senhoras e frascos de perfume. Pesava uma onça e parecia dizer: deixai-me voar!
Fomos deitá-la para o quintal. Não subiu, como Sacho previra. Não subiu...A maravilha estelar afocinhou. As demais estrelas, feitas de papel de jornal, brincavam lá em cima, às turras e saracoteios, rindo-se dela, coitada! A pobre jazia no chão. Mestre Sancho, vitorioso, ria-se mais do que as estrelas de jornal e grude. Ria-se já amarelo como burguês consumado.
-Eu sempre disse que não subia.
E não subiu. Faltava-lhe o barbante, o grude e o génio do rapazio da minha rua.


João de Araújo Correia in "Terra Ingrata"

1 comentário:

  1. Um conto de ENCANTAR...
    Estrelas ..no céu...Estrelas .que brilham..como se de ANJOS se tratassem...
    ..em turras e saracoteios...
    em coraçoes de crianças...FELIZES..


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