sexta-feira, 1 de junho de 2018

A criança que fui, a criança que sou





A infância é o sono da razão 
 J. J. Rousseau

    Quando olho para esta fotografia, começa a desbobinar-se o filme da minha infância. Um filme com cheiros a leite quente, a sabonetes La Toja, a lousa molhada. Com sabores a marmelada fresca, a rebuçados de tostão, a biscoitos de canela. Apareço sentado na carteira da escola que tinha um buraco com um tinteiro branco, na primeira fila, ao lado do Repas, um miúdo traquinas, de melena rebelde, e mais perto da D. Zinha, a professora paciente e bonacheirona, que impunha respeito sem palmatoadas nem puxões de orelha. Revejo-me à janela a soltar bolas de sabão, maravilhado com o  seu colorido a lembrar-me o fascínio do caleidoscópio.
    Recordo as minhas respostas à "original" pergunta - O que queres ser quando fores grande?: bombeiro ou carteiro, ou militar. Servia-me qualquer profissão com farda.
    Era bem comportado. O que não significa que não arranhasse os joelhos nas quedas da trotineta, não rasgasse os fundilhos dos calções ao descer pelos ramos grossos das árvores de que fazia escorregas.

    Hoje, tenho netos da idade de mim na foto, presentes dos meus filhos. Eles puxam-me as barbas brancas, exigem que jogue à bola com eles,  que com eles brinque às escondidas. Faz-me bem o exercício físico, disse-me o médico enquanto me passava receitas para o colesterol, o ácido úrico, a tensão arterial.
    Fui promovido a idoso, a sénior. Instalaram-me os anos na terceira idade. E é um rol de regalias: descontos nas viagens, direito a lugar sentado nos autocarros abarrotados, meio bilhete nas entradas em museus, no cinema e no teatro, prioridade nas filas de espera para pagar as compras no supermercado, etc., etc,.
    Mas o mais importante, para mim, é não ter perdido o jeito de ser criança, não me ter murchado a pureza do olhar, o sabor dos sonhos, o prazer de rir.

   A trotineta das minhas aventuras velocípedes, apesar das mossas,  resistiu a tropelias de filhos e de netos. Não é, agora, um mero brinquedo. É o troféu da minha infância.


M. Hercília Agarez
Vila Real, 01 de Junho

1 comentário:

  1. ...A "criança " que existe dentro de nós..

    que nos faz "SONHAR" E PARTILHAR BONITAS ..MEMÒRIAS ,,
    Alegrias ..ternuras ..e um TROFÈU..BEM GUARDADO..NO CORAÇÂO ::!!

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