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Foto:josé alfredo almeida |
quarta-feira, 31 de janeiro de 2018
Gato trapezista
Apeteceu-te aventura,
mas ela saiu gorada.
Tens de esperar a altura
em que chegue a passarada.
Tem juízo no focinho.
Espera-te, pronta, a comida
e um colo bem quentinho.
Não achas que é boa vida?
M. Hercília Agarez
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
Que rico colinho!
Lá
se foram os caracóis, marca de uma identidade no feminino, moldura bela de
infantis rostos mimosos! Tesouras atrevidas
e sem coração avançaram, afiadas, pela tua cabeça de garotinha que a mamã
levou ao seu coiffeur. Para o caixote
do lixo seguiram os restos da tua idade de brincar.
Agora,
de cabelo à garçonne, com esse gancho
adulto a domesticar as farripas rebeldes, pareces (não fora a tua roupa) as meninas
órfãs ou abandonadas de que asilos eram depósito. Deixa lá! Os anéis desapareceram,
mas não levaram com eles a tua beleza fresca.
Pareces
feliz. As bonecas e demais brinquedos, no seu estatismo frio e mudo esperam, em casa, por ti.
Tiveste
ordem de sair para o quintal, jardim das delícias de todas as crianças pelo que
encerram de apelos à aventura, a saltos e correrias sem reprimenda.
Agora
os teus filhos não são de bazar. Ofereces o teu colinho e os teus carinhos a
dois gatos, quase do teu tamanho, que se apequenam para nele caberem, sem
bulhas nem bufadelas. E se, sentindo-se em dívida, te lamberem a mão, lembra-te
que a gatice não conhece outra forma de beijar...
M. Hercília Agarez
Vila Real, 30 de Janeiro
segunda-feira, 29 de janeiro de 2018
Depois de tudo
Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer
Nuno Júdice
domingo, 28 de janeiro de 2018
sábado, 27 de janeiro de 2018
Último retrato
e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...
não,
não te vais embora: fico contigo…
deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.
Marguerite Yourcenar
sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Transborda a paisagem
Ver pouco
quinta-feira, 25 de janeiro de 2018
Espelho azul
quarta-feira, 24 de janeiro de 2018
Posto de vigia
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Foto: josé alfredo almeida |
É o coração que sente Deus, e não a razão.
Pascal
Saberia quem te plantou ai, assim despojada, assim modesta, assim isolada, quantos visitantes contabilizas, ano após ano?Mas não te envaideças. Sem mérito arquitectónico, fechada a mais de sete chaves, as tuas frinchas deixam entrar tiras de luz, convidam a espreitadelas curiosas. Inútil, a varanda, que o Santo não tem intenção de frequentar. Prefere o posto que lhe foi, estrategicamente, destinado.
Salva-te do abandono, do esquecimento, nesse ermo-mirante, a surpresa que oferece a tua parede mais ditosa. O teu padroeiro, São Leonardo, anfitrião atento e vigia eficiente, inspirou a Miguel Torga um dos seus mais belos poemas, gravado num painel de azulejos. Ninguém resiste a lê-lo, com recolhimento de oração. Diz o autor, no Diário IX, que lhe custou "trinta anos, bem medidos, de tenacidade".
Tem boas vistas, o bom do santo. E todo o tempo do mundo para se embasbacar com esse naco do "Doiro sublimado", desse "excesso da natureza", desse "poema geológico".
No Diário III escreve o "Orfeu Rebelde":
"[... ] Que força me atrai [...] a estas capelinhas onde mora um Deus em que não acredito?" Perdeu-O na adolescência, passou a vida a negar a sua existência, mas nunca teve "a força de O esquecer". Vejamos:
S. Martinho de Anta, 15 de Abril de 1979 - Ser incréu custa muito! É dia de Páscoa. O gosto que eu teria de beijar também o Senhor, se acreditasse! Assim, olho a fé de todos em aleluia, e fico nesta tristeza agnóstica que faz da vida um agónica aventura sem esperança de ressurreição.
Diário XIII
M. Hercília Agarez
Vila Real, 24 de Janeiro
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
segunda-feira, 22 de janeiro de 2018
O inverno do nosso descontentamento*
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Foto:josé alfredo almeida |
Tristeza de Inverno. Árvores espelham saudades das folhas,
sua roupa aconchegante. Feitas lixo, feitas cinza. Saudades da passarada que
lhes faz serenatas diurnas, de seus galhos fazendo poleiro.
Céu e rio rivalizam em opacidade e melancolia. Cinzentos de
aliviar luto. Águas fluem por obrigação, por destino. Maceração.
O barco não fugiu. Não receou a força arrastadora da
corrente. Fiel, resignado, aguarda seu dono entre ventos e marés. Abriga o
vazio. Cala memórias e aventuras passadas. Anseia vir a ser, de novo, berço
deslizante por remos embalado.
Janeiro triste torna
mais tristes os tristes.
* Título de romance de John Steinbeck
M. Hercília Agarez
Vila Real, 22 de Janeiro
domingo, 21 de janeiro de 2018
sábado, 20 de janeiro de 2018
Retiro
sexta-feira, 19 de janeiro de 2018
Tons cinza
Frio do rio
quinta-feira, 18 de janeiro de 2018
Escritor do Douro em pessoa
"Quando, nos meus tempos de exílio, me davam saudades do longínquo Douro - o Doiro, como se dizia no Vilarouco -, punha-me a reler, para as matar, um naco de prosa de um dos escritores que a ele se mantiveram mais apegados, mergulhando as raízes no terrunho e no rio de nascença, como as cepas a crescer para o fundo e para o alto, de socalco em socalco, desde o rés das margens até ao céu e deste até ao âmago do coração dos homens: falo de João de Araújo Correia, que se quis fiel até a morte a casa matriz telúrica que é a de todos nós, durienses e transmontanos.
Nunca o conheci senão através da escrita - a escrita tersa e enxuta dos seus contos como das suas crónicas, que desde a juventude me habituei a saborear, e mais tarde a das cartas ou postais, por vezes de sóbria delicadeza íntima, como que me brindou, no meu regresso à pátria.
(...)
Os seus curtos textos me bastavam, porém, para ir compondo, a pouco e pouco, uma figuração da persona desse autor de obras breves - pois não fez ele o "elogio do livro pequeno", mesmo se o tratava por "sua excelência o livro"? - que conseguia condensar nas suas frases de húmus macerado todo o perfume de um bom vinho fino, dado a beber ao leitor em lentos goles. Raros como ele sabiam com uma tal arte da concisão arrotear, num "trabalho de cava", as palavras da língua portugues, a cuja defesa e ilustração consageou muito do seu labor amoroso. "Sei que nasci escritor em casa de lavoura, situada à beira de uma fonte, na antiga vila de Canelas" - eis como João de Araújo Correia se apresenta, numa quase lacónica nota autobiográfica que nos deixou. Quem assim seria capaz de literariamente se micro-retratar?
Desde os títulos de cada volume modesto, que lá ia dando a lume, aos de cada uma das peças buriladas, pode ler-se a identificação como a "patria pequena" do Douro, que era tudo o seu universo, em sentido próprio. "Parece-me que foi sofre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos"- diz ele ao falar de uma das suas colectâneas.
A metáfora mineral ajusta-se perfeitamente à matéria e à forma de que é tecida a ficcção de João de Araújo Correia, assim como os seus artigos jornalísticos e as suas conferências, de tom menor mas sempre de talhe primoroso.
A consciência da escrita como fazer poético é uma obsessão do autor de Contos Bárbaros. Veja-se o conto "O escritor", em que a condição dura deste é concebida como um "fado" - um fatum trágico, à letra - a que não pode eximir-se. Mas ela é para ele outrosssim o exercício permanente de uma liberdade criadora, que faz apelo a um sacrifício, superior ao de qualquer trabalho penoso. "Dizem alguns que britar pedra muma estrada, à torreira do sol, é uma brincadeira comparada com o esforço de escrever com arte" - congemina o protagonista do conto "Só".
(...)
José Augusto Seabra in jornal "Primeiro de Janeiro" de 1 de Dezembro de 2000
quarta-feira, 17 de janeiro de 2018
Auto-Retrato
Miguel Torga: comemora-se hoje mais um aniversário da sua morte, ocorrida em 1995 |
"Desta terra sou feito".
Em cima dumas fragas
Me pariu Diana.
Quem a fecundou?
Orfeu
Ou Prometeu?
Não sei.
Poeta sou
E caçador.
Do céu roubei
A Zeus
O fogo da criação.
M. Hercília Agarez
in Miguel Torga A Força das Raízes (ensaio), Papiro Editora, 2007
terça-feira, 16 de janeiro de 2018
O Inverno da vinha
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Foto:josé alfredo almeida |
Cepas em quase cruz. Tiritantes, mas firmes. Negras como os
esteios, amparos dos seus anos, da sua velhice. Em compasso de espera. Pela
frialdade que lhes chega às entranhas, adivinham a chegada dos trabalhadores,
das suas mãos sábias, credenciadas por longa experiência nas delicadas tarefas
da poda e da empa.
A tesoura não repousa. É sua eterna companheira, tão
indispensável como em missa sacristão. Dela cairão em chãos invernosos varas
inúteis, desordenadas. Inúteis nas videiras, úteis quando, em molhos feitas,
substituem as acendalhas em lareiras rurais.
A empa (ou erguida) leva-me a Miguel Torga e a um dos poemas
"Bucólica" em que enumera, entre nadas de que é feita a vida, um
gesto do seu velho: "Meu pai a erguer uma videira / Como quem faz a trança
à filha".
E eu, reduzida à minha insignificância perante o mestre,
digo:
Dedos
encarquilhados
erguem
videiras:
lavores
no masculino.
in
As Asas da Libelinha
M. Hercília Agarez
Vila Real, 16 de Janeiro de 2018
Como uma árvore
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