domingo, 18 de setembro de 2016

Vestido de Domingo

Foto:josé alfredo almeida


Caminho estes lugares e deixo um olhar submerso, mas enraizado, na margem que me viu nascer. No início, nada pensei porque a cor da saudade tingiu-me sem qualquer sentimento de culpa.
Sentada neste banco, subi os pés para pousar a cabeça, entrelacei os braços nos joelhos e, de soslaio, petrificada a olhar para ti, pedi-te memórias de uma infância colorida por um punhado de anos que lhes oferece, agora, uma paleta sépia. 40 Anos me separam desta pintura onde predomina o verde e o contraste de flores perfumadas ou dos frutos vermelhos que guardavam, na essência, a autenticidade dos seus sabores. Olho a vida que as tuas águas levaram na corrente. Deixaste roubar o brilho e os risos histéricos de uma inocência que pulava, esgueirava e enroscava o teu leito.
Os anos passaram e o rio vai grande. Galgou a entrada e o portão da quinta, cobriu o socalco ribeirinho, agora selvagem, e fez desaparecer o pequeno areal onde o meu avô cuidava do Barco Rabelo e onde a minha mãe se sentava enquanto eu e os meus irmãos disfrutávamos as águas mansas e doces das tardes de Verão.
Hoje é Domingo. A Igreja da aldeia fica muito afastada, no cimo do monte. Em vez de subir a montanha por quelhos, caminhos públicos ou escalar por prédios rústicos alheios, herdamos o velho hábito da missa na Capela das Caldas do Moledo.
Logo pela manhã todos vestem as melhores roupas. Lembro-me tão bem, os vaporosos vestidos que outrora a minha mãe mandava confeccionar na modista da Régua. Lembro-me tão bem dos bordados, folhos, franzidos, machos e pregas ou dos delicados favos-de-mel, sem esquecer todos aqueles acessórios de moda que fazem de uma menina uma delicada boneca de porcelana.
Estávamos prontos e descíamos a calçada fazendo do jardim e estradão, que dividia a quinta, o grande tapete de pedra que a natureza oferecia à nossa passagem. Era obrigação e desejo chegar ao início da missa mas, a pressa do momento envergava em nós um manto cego e surdo perante toda a beleza dos aromas e cores que, mesmo sem resposta, nos ofertavam leves brisas matinais. Naquele dia deixamos para trás os milhões de verdes intensos e brilhantes de onde emergia a beleza de uma paleta colorida salpicada de Sardinheiras, Malmequeres, Narcisos e Jacintos. Esquecemos a beleza dos gulosos filhos das árvores que dormiam as tranquilas manhãs do fim-de-semana, ou o som da água fresca da mina a jorrar partituras da boca da fonte…
Agora sim, a embarcar no Barco Rabelo, de pé, não fosse amarrotar ou sujar o engomado vestido de domingo. A família é grande, pais, irmãos, tios primos, todos no mesmo barco a enfrentar, mais uma entre tantas vezes, as profundas águas do Douro.
Chegamos, àquela que no passado somou registo de grandes glórias, e atracávamos o barco seguindo para a missa, agora a iniciar. A capela não era muito grande mas parecia responder ao público que a crença e a fé frequentavam.
No final, já sem batina, o Sr. Padre passava entre o rebanho que, distraidamente afirmava outro momento de praxe e caracteristicamente domingueiro. E ficávamos, ali, durante algum tempo, trocando palavras amigas entre os demais.
De regresso, embarcávamos e desembarcávamos o mesmo barco, rumo a casa, subir o belo tapete e tomar o pequeno-almoço de ovos estrelados com açúcar a lambuzar o trigo na gema húmida esquecendo, apesar do dia, o pecado que nem é preciso falar.
E porque hoje é domingo, chegou a hora de brincar com os meus irmãos e os meus primos, quando escuto a minha mãe:
- Lurdinhas, anda tirar o vestido para não sujar!
Bem, chegou a hora de arrumar o vestido de domingo, aquele traje que fez deste dia um fugaz e mágico momento de uma inocente vaidade.

18-09-2016
Lurdes Gomes

1 comentário:

  1. ..DOMINGO...
    ...Não mudei de vestido..
    ..Plantei ..alfazema ..e camomila...

    Era..um Domingo...muito simples..!!!

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