quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Sábio, o lavrador

Foto: Alvão


    Também ele tem a sua sabedoria. Não aquela que as nenhumas ou poucas letras lhe ensinaram e de que pouco lhe valeram. Nem história, nem geografia. Matemática só a que lhe permitisse conferir as cabeças do gado caprino, antes do regresso a um aconchego sem aconchego. O seu alfabeto é a terra. Sua literatura o Borda d’água ou o Seringador. Desde criança foi acumulando saberes. Intuitivos e miméticos. Descalço, de roupa remendada e pouca para o frio, levou gados a pastos próximos ou distantes, com a sua côdea de pão em saco surrado, com o companheiro de quatro patas. Sozinho, na solidão dos montes. Foi um menino diferente, sem brinquedos nem amigos humanos. Sua casa, além do casebre, a amplidão da natureza. Seu tecto o céu. Ou um telhado de telha vã, permeável a chuva e sol, a frio e a calor.

    Com seus pais aprendeu a semear batatas, medindo a distância a palmo. A cavar a terra. A adubá-la. Deles herdou aquela intuição de adivinhar trovoadas, de aprender as horas pelo sol relógio, de sentir no ar um cheiro a ameaça de míldio. E de oídio. Franzino embora, que não era farta a mesa, alomba com o pulverizador cheio de calda bordalesa para dar guerra à bicharada destruidora. Vai ao monte por lenha abandonada. Empunha o machado, para cortá-la para o lume, com a ligeireza de quem pega numa galinha a ser sacrificada em dia de festa.

    Fez-se homem sem ter sido criança. Familiarizou-se com todos os trabalhos agrícolas. Em troca de magra jorna, de salgada sardinha, de copo de vinho. Aturou patrões. E feitores, por vezes ainda mais exigentes, como quem se desforra de servidão não esquecida.

    Da vinha sabe tudo. De cor e salteado. Faz disso gala. Não falha um enxerto, uma poda. Ergue varas com perfeição de rendilheira. Sulfata. Arranca os ladrões. Mesmo não lhes pertencendo, quer às videiras como filhas. Quer que elas botem figura quando chegar a altura do exame, ou seja, da produção. Quere-as generosas, úberes. Cobiçadas como belas jovens casadoiras. Lá estará para se besuntar com o roxo e o branco melados e doces. Descerá socalcos como quem leva às costas a pedra que Sísifo empurrou. Saudades dos vindimos que o plástico destronou. Deixá-lo. Vamos ao lagar, depois da ceia. Corpos suados exorcizam cansaços. Cantigas e música marcam o ritmo das pernas. Pisa que pisa. Perna acima, perna abaixo. Já cheira a mosto. Cheiro que embriaga tanto como o desejo das moças, já recolhidas nas cardenhas, em vigílias excitadas.


Vila Real,20 de Setembro de 2016
M. Hercília Agarez

1 comentário:

  1. ....Gostei muito..deste momento ...
    Pobre ..requintado..o SÀBIO ..LAVRADOR...
    para ..SEMPRE " !!


    GOSTEI MUITO::MUITO...

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