sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A Santinha de Vilar Chão





A mediação entre o divino e o humano, pela sua própria natu­reza do mistério e transcendência, sempre se ajeitou notavelmente ao aparecimento de casos duvidosos. E até à contrafacção, pois tem havido por vezes gente suficiente­mente destituída de escrúpulos para pôr a render em seu benefício a fé simples do carvoeiro de que já falava o filósofo. Por isso, periodi­camente, surgem aqui e ali os videntes e os miraculados. Graças a Deus, a Igreja tem um filtro muito apertado por onde côa as manifestações ditas sobrenaturais e limita-se a autorizar, com muita cautela, os casos raros em que des­cobre irrefutavelmente impressa a dedada divina.
Não faz grandes semanas que, algures num lugarejo esconso do Minho, uma criança afirmou ter visto Nossa Senhora e algumas outras pessoas testemunharam sinais misteriosos. A imprensa nortenha concedeu ao caso as parangonas de costume, em pri­meira página. Ignoro em que ponto se encontra o assunto, mas a atitude da Igreja terá sido, uma vez mais, de extrema prudência.
Há muitos anos, em Grijó, Macedo de Cavaleiros, uns pastorinhos proclamaram ter visto a Senhora numa fraga desviada da povoação, para onde logo afluíram mós de gente em busca de uma experiência de contacto imediato com o sobrenatural. O lugar cha­ma-se, desde então, a Fraga da Santa. Não consegui apurar ao certo quando se deu isto, ainda bem vivo na memória dos velhos da aldeia. Mas creio não errar muito ao aventar que terá sido à boca dos anos vinte, uma sequela das aparições de Fátima. Que aldeia desdenharia ter no seu termo uma réplica, coincidente quase ponto por ponto, dos acon­tecimentos da Serra de Aire?
O que levará as pessoas, particu­larmente os simples, como é o caso dos pastorinhos, a anunciar visões e revelações? Não vamos meter tudo no mesmo saco. Em muitos casos, porventura a maioria, não haverá desonestidade — apenas alucinação. A pessoa não finge dolosamente que vê: vê mesmo. A fé em bruto e a incapacidade crí­tica fazem o milagre. E o colec­tivo, atascado de natural e sedento de sobrenatural, avoca-o, amplia-o, dá-lhe a dimensão de coisa incontestável, consagra-o. E nada disto é, no fundo, pecaminoso, porque ninguém está de má fé. Como o parvo de Gil Vicente, «per malícia não erraste».
Infelizmente, nem sempre as coisas se passam com esta candura e naturalidade. Era eu miúdo, aí pelos começos da década de cin­quenta, rompeu grande alvoroço por todo o distrito de Bragança. Em Vilar Chão, concelho de Alfândega da Fé, surgia subita­mente uma santa — a santinha de Vilar Chão, como logo lhe chama­ram. Estou a ver a sua imagem, reproduzida aos milhares em pos­tais, pagelas e estampas daquelas que os romeiros entalam na fita do chapéu: uma mulher ainda nova, magra e pálida, embiocada num lenço preto, o resto da roupa preto também. Nas mãos abandonadas sobre o regaço, um rosário. E, na testa e nas costas de uma mão, a marca de santidade: uma cruz gra­vada a negro. Dizia-se que as cru­zes apareciam ali por obra e graça do Senhor. Inculcava-se a criatura vidente e miraculosa. E, de facto levadas por uma fé cega e por mil e um desideratos (sarar de alguma doença, reaver o sossego perdido, tirar um filho da má vida), ali pas­saram brevemente a confluir mul­tidões de fiéis, em excursão ou romagem solitária. A bandeja dos donativos, ao fim do dia, estava acogulada a transbordar. Era um negócio florescente.
Talvez valha a pena contar um dia esta história exemplar. Há ainda quem se lembre muito bem de como tudo se passou, inclusiva­mente do desmascarar da farsa, que se revestiu aliás de pormeno­res burlescos, capazes de nos pro­vocar uma saborida gargalhada, se não nos provocasse antes um asco irreprimível esta manipulação despudorada do divino em beneficio de algumas carteiras — que não a da própria “santinha”, ao que julgo saber joguete inconsciente de outros passarões.
Descoberta a mescambilha, o povo caiu em si, lamentado por­ventura a esmola esportulada e a cera gasta com ruim defunto. E a musa popular pegou no caso e deu-lhe a imortalidade sob a forma de sextilha:

Para Alfândega da Fé
Toda a gente vai d'a pé,
De carreira ou de carroça,
Ver a menina modesta,
Que tem uma cruz na testa
Feita com carvão da choça.

É a desmistificação poética duma burla que, se acaso há jus­tiça para além desta coisa meio esquisita a que chamamos mundo, há-de ter em sede própria outras desmistificações menos jocosas.


A. M. Pires Cabral, in A Região, 27 de Fevereiro de 1985



Notas  do autor do blogue:
1- Esta fotografia que, retrata tal e qual como era esta "santinha", é uma relíquia sagrada de uma família do Douro, concretamente da Penajóia, onde certamente, nos anos 50, foi também venerada pela força da mistificação dos seus "milagres" .
2- Esta história foi brilhantemente ficcionada pelo escritor  A. M. Pires Cabral no conto  "Uma cruz na testa, outra nas costas da mãos" que faz parte do livro " Os Anjos Nus", das Edições Cotovia, de 2012. 

1 comentário:

  1. ...É particularmente interessante este texto..
    ..Apreciei ...bastante...

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