quinta-feira, 23 de abril de 2015

23 de Abril - Dia Mundial do Livro





Querido Leitor: 

Vais ler de uma assentada, se a macicez do texto te não desanimar a curiosidade, os seis dias desta Criação do Mundo, que foram aparecendo nas montras separadamente, à medida que iam decorrendo. Livro temerariamente concebido na mocidade, imprevisível na trama e no rumo, só o tempo lhe podia dar corpo e remate, traçando-lhe o enredo e marcando-lhe a duração. O que acabou por acontecer, já que os fados, condoídos da cegueira do projecto, não quiseram calar, antes de ele ser levado a cabo, a voz do autor.

Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor. Mundo de contrastes, lírico e atormentado, de ascensões e quedas, onde a esperança, apesar de sucessivamente desiludida, deu sempre um ar da sua graça, e que não trocaria por nenhum outro, se tivesse de escolher. Plasmado finalmente em prosa — crónica, romance, memorial, testamento —, tu dirás, depois da última página voltada, se valeu a pena ser visitado. Por mim, fiz o que pude. Homem de palavras, testemunhei com elas a imagem demorada de uma tenaz, paciente e dolorosa construção reflexiva frita com o material candente da própria vida.

Coimbra, Julho de 1984


Miguel Torga

2 comentários:

  1. Relembrar o nosso escritor "Miguel Torga"..
    O seu forte e "verdadeiro coração "Duriense "...
    nas suas obras , repletas de contrastes , de emoções ,
    e de uma grande sensibilidade , "a reforçar ..
    Parabéns , ao autor , do blogue..
    maravilhou!

    ResponderEliminar
  2. Uma obra inesquecível. E, se o Douro é o mote, não se esqueça Vindima.

    Costa

    ResponderEliminar