quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Jóia de Família



"Esta edição é dedicada ao lavrador do Douro, que durante dois séculos aceitou o desafio dos elementos e os contratos muitas vezes penosos dos poderes que a sociedade lhe impunha. Ao terminar a minha acta de proprietária que os antepassados assinaram com o sangue nas veias, sinto-me mal com o passado e quero deixar na terra das vinhas e dos socalcos abrasados de sol um pouco da minha presença.
Ninguém melhor do que a Cooperativa Vitivinícola do Peso da Régua, de que fui sócia, podia ser intermediária dos meus sentimentos junto dum povo que me deu um sem número de personagens, funestos uns,, gloriosos outros, todos romanescos. Tanto mais que esta obra, em edição especial, está na mesa das deliberações em que o destino de muita gente foi deferido como melhoramento da sua vida.
Foi constituída em 25 de Junho de 1950 e as primeiras instalações datam do ano de 1951, no vale do Rodo que marca o limite das duas freguesias - S. José de Godim e Peso da Régua. O vale de Jugueiros, em Godim, foi em tempos comovidamente demarcado como um dos mais belos do mundo. Por isso teve tantos vinhedos célebres e casas de honrosa memória. Como a da Ferreirinha, que lá morreu, jogando as cartas, como uma dama de espadas de Puskine. Porque aquele salão de verdura, onde os relâmpagos se cruzam em dia de tempestade, tem um prazer com ele, que é ser enorme de solidão mesmo quando habitado palmo a palmo.
(...)
Os vinhos desta casa, que é nova mas prendada de muitas condições de trabalho e apuramento das suas operações, foram galardoados com medalhas de oiro e prata. Tenho pena de afastar-me de tão formosos tempos e lugares onde deixo, como casa do último encontro, o jazigo de família. Mas tudo arrefece à superfície dum mundo em perpétua mudança. Tudo menos o vinho com que se brinda, neste caso um vinho de grande escolha a apresentar como jóia da terra, a par duma obra em que, mais uma vez, o Douro é protagonista. O espírito do lugar e o espírito do vinho tem aqui um momento de aprovação. Falemos ao futuro, recriando o passado. E que tudo não volte a ser o que era, mas melhor, muito melhor."

Agustina Bessa-Luís

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