quinta-feira, 1 de março de 2018

Branco sobre negro

Foto : josé alfredo almeida



O que é útil é belo
Platão
                                                                                                     


    Ao iniciar uma viagem de barco que o levaria de Lisboa a Santarém, escreveu Almeida Garrett (1799-1854) em Viagens na Minha Terra: "[...] E protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica".
    Pois eu, na minha pequenez de escrita, não protesto coisíssima nenhuma. De jornada a esta "aldeia da roupa branca" a que a fotografia, mentalmente, me conduziu, apenas prometo aproveitar a oportunidade que ela me oferece para  honrar um elemento menorizado da paisagem do Douro vinhateiro.

    Bem visíveis no Inverno, que atravessam desagasalhados, os arames, bisonhos, discretos pela cor, pela magreza e pela inactividade, não atraem os olhares displicentes de quem passa. No entanto, reconheçamos, eles são o complemento directo de esteios em xisto, sólido amparo a que se agarram como crianças às saias de suas mães.
    Mãos de sabedoria ancestral esticam-nos, sobrepõem-nos paralelamente, para que,  por sua vez, sejam eles a protagonizar a segurança de renovos trepadores, primeiro, de cachos de uva embrulhados em folhas camaleónicas, depois. No auge da produção, aceitam, humildemente, a sua invisibilidade.
    Tiram a desforra quando lhes atribuem outra utilidade, quando lhes chega ao nariz o cheiro purificador a roupa lavada, antes no rio, com sabão e cora, agora saída de máquinas com que o progresso acudiu às donas de casa. Sentem-se afagados pela maciez de lãs e algodões. O vento agita cada peça desfraldada. A paisagem agradece esse contributo rural de cor e de vida. Os arames, bem, nesses nem é bom falar...De contentes se lhes riem os dentes...


M. Hercília Agarez
Vila Real, 01 de Março de 2018

Sem comentários:

Enviar um comentário