sexta-feira, 9 de junho de 2017

Vergílio Correia:um olhar fotográfico



Integrada na comemoração do Dia Internacional dos Arquivos a celebrar no dia 9 de junho, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, vai promover uma exposição evocativa do eminente historiador de arte, arqueólogo, etnólogo e professor universitário, Vergílio Correia, nascido no Peso da Régua em 19 de Outubro de 1888 e falecido em Coimbra, em 3 de Junho de 1944, a partir do seu arquivo documental e fotográfico. 



Sobre  este ilustre reguense Vergílio Correia, leia-se este magnífico retrato:

 "No dia 3 do corrente (3-6-944), sobre o almoço recebi de Coimbra um telegrama que rezava assim: "Acaba de falecer Vergílio Correia-Alice".
Li o telegrama uma vez, duas vezes, mas não o percebi. Fiquei atónito. Pedi à família que mo explicasse. Só então soube que o Vergílio tinha falecido. Meti-me num carro e larguei para Coimbra. Quando lá cheguei, o Vergílio estava no caixão, a esposa prostrada num divâ, o filho único adormecido para um quarto interior. Soube que o Vergílio tinha adoecido na véspera e não durara vinte e quatro horas. Fora acometido de apoplexia, entrara imediatamente em coma agonizante com a respiração ruidosa. Morrera brutamente quem tinha sido tão fino.
Depois que morreu o Dr. Vergílio Correia, o tema da minha meditação tem sido este:"a vida é ai". Esta frase de minha mãe resume a elegia de João de Deus intutulada A Vida. A vida é um ai...Ainda ontem Vergílio era estudante, vinha a minha casa nas férias, beijava a mão a meu pai, chmava-lhe Tio Correia, comia à pressa umas peras e largava para os montes, à procura de arqueologia. Voltava radiante - simplesmente maravilhado, meu tio - com um bornal cheio de pedras.
Eu era pequeno, mas admirava o fanatismo deste primo que falava bem e pelos cotovelos, estudava Direito e desenterrava pedras, escrevia em jornais e trajava como um contínuo. Resolvi ser como ele, logo que fizesse o exame de instrução primária. Minha mãe achava lunática a devoção de Vergílio pelas velharias.
Ainda ontem, na minha ilusão, sucedeu isto.Pois, já hoje, como os cabelos brancos, o Vergílio está na Conchada, esperando que os vermes o preparem para vir juntar-se ao pai e à mãe, sepultos num cemitério do Douro. A vida é, como dizia minha mãe, um ai.

(...)

Na mesa em que escrevo à pressa esta nota íntima, escreve ele, numa tarde de verão, o prefácio para o meu Sem Método. Disse de mim o bastante para me envergonhar em matéria de elogio, mas disse-o com sinceridade tão cândida, que me cativou com estima.
Nunca aqui o verei, sentado a esta mesa, a escrever e a conversar, a interromper a conversa para me gabar um prato ou uma gravura que eu tivesse comprado;a beber um copo de água com sofreguidão de rapazinho, a provar-me de mil modos que era a minha antítese. Eu sou calmo. Ele era irrequieto. Nascido no Norte, parecia do Sul pela verbosidade e pela desinquietude. À parte o cabelo branco, era um azougado moço.
Todos os anos me visitava no Verão ou nas vindimas, quando fingia vir até ao Douro para descansar na Quinta do Pombal, termo da Penajóia. Não descansava nada. Descia a encosta da terra das cerejas, atravessava o rio, deitava uma carta no correio das Caldas do Moledo, tomava um banho termal se lhe apetecia, metia-se outra vez na barca, subia a encosta de novo e tornava a desce-la se precisasse de vir à Régua comprar um brinquedo para o Lequinho, menino que lhe nascera depois de vinte e cinco anos de casamento estéril. Não tinha paragem.

Nunca vi homem que aliasse mais espiríto infantil à inteligência adulta do que Vergílio Correia. Uma vez, em Lisboa, depois de almoçarmos opiparamente, saímos de casa para visitar o Dr. António José de Almeida, chefe do Estado nesse tempo. Resolvemos ir a pé como fim de auxiliar a digestão. Íamos caminhando...Nisto, o Vergílio Correia avistou uma confeiteira e disse:
-Olhe, primo, entendo que devemos aqui entrar e comer uns bolinhos. Não acha que parece mal estar como cara de fome diante de um Presidente?
Homem cumulado de veneras, dignidade, o Vergílio Correia apagava-se diante de toda a gente para ocupar o último lugar.Com as calças sem festo, a gravata barata, o cabelo cortado à meia cabeleira, procurava passar por zero na sociedade. Não o conseguia, porque o atraiçoava o olhar e a palavra sábia.
Mais do que a inteligência, o saber,a proibidade cientifíca, foi descomunal, na minha opinião, a bondade de Vergílio. Não dizia que não a ninguém. Dava a camisa a quem tivesse mais enxoval do que ele. Foi homem feito para dar como se fosse santo.Eterno estudante, no princípio do mês tinha a mesada gasta. Em pândegas?Não. Em benefícios...O ordenado de professor não lhe aquecia o bolso, ia-se em esmolas, em auxilíos, em propinas de estudantes pobres. Creio que chegava a inventar desgraças para as remediar.
Ouso dizer que Vergílio Correia foi carativo do que Francisco de Assis. Francisco de Assis casou com a pobreza sem impedimento canónico, porque não era casado nem tinha filhos. Vergílio Correia casou com a pobreza sem se lembrar da mulher e do filhinho."

João de Araújo Correia in Três Meses de Inferno

2 comentários:

  1. Evocações preciosas. Felizmente que existe
    quem as divulgue, pois ficamos sempre mais ricos.
    A exposição foi "mal" mencionada com alteração
    de nome, e eu vi a sua correcção. Podiam antes
    de divulgar, olhar bem para o que escrevem.
    Penso ir muito em breve à Torre do Tombo.

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  2. Aproveitando a descida tão desejada do calor
    que nos tem atingido fui até à Torre do Tombo
    ver esta exposição. Um português extraordinário
    que deixou preciosas imagens, e não só, de uma
    época a descobrir, por quem não a viveu e para
    os futuros cidadãos que queiram saber algo dos
    antepassados. E era tudo tão diferente!.
    Pena a vida ter sido tão curta pois muito mais
    testemunhos do seu saber podia ter deixado.
    Agradeço a divulgação que fez, e me permitiu
    ficar a conhecer Vergílio Correia.
    Tudo de bom para si.

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