quarta-feira, 7 de junho de 2017

Poeta à porta de casa



Um dia destes, indo de longada para uma terra que cultiva com esmero os moscatéis, desviei-me da minha derrotina para ver a casa onde nasceu um poeta – malquisto de quem o não percebe ou lhe lê o feitio sem lhe ler os versos.
Não é que fui encontrar, como diria um brasileiro, o poeta mesmo, à porta de sua casa? A festa que ele me fez, só de trasmontano a trasmontano. Mostrou-me, em primeiro lugar, o interior “do ninho seu paterno”. Do antigo forno, onde se cozeu muito pão, durante gerações de lavradores, fez uma lareira para conversar com o lume, em infinitos colóquios, durante as noites de inverno. Do eido, como se diz no Porto, fez um pequeno jardim.
- Venha ver uma azálea que aqui tenho. Visito-a cada ano para lhe ver as flores. Venho de longe, em cada primavera, como se viesse cumprir um voto. Mas, vale-me bem a pena… Que beleza![…]
- Venha agora comigo àquele monte. Venha, que não perde tempo. Dali se avistam, abraçadas, quase todas as serras portuguesas. […]
- Cheire estas ervas. Que bem que cheiram! Olhe esta que cheira a canela… […]
Despedi-me do poeta na sua aldeia natal, junto de um negrilho que o viu nascer e lhe ensinou poesia.
- Os brutos já lhe cortaram pernadas. Mas, ainda assim… Olhe para ele de baixo para cima. Olhe!
Mirei o interior da árvore trasmontana. Vi-me numa nave de luz coada por folhas como através de vitrais. Recolhi-me sem uma palavra.
O negrilho, aio do poeta, ensinou-lhe poesia. Não perdeu o tempo nem recebeu mau pago. O discípulo dedicou-lhe versos que são uma prece. Recitou-mos como se a si próprio murmurasse. Com eles no ouvido, segui jornada. Fui-me chegando à terra dos moscatéis.


27/05/1972
João de Araújo Correia In Nuvens Singulares

1 comentário:

  1. Dois poetas: o visitante e o visitado.
    "fez uma lareira para conversar com o lume, em infinitos
    colóquios, durante as noites de inverno"
    Que beleza, digo eu.

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