quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Rio parado na alma

Foto:josé alfredo almeida


A plácida superfície deleitosa para quem a contempla esconde a fúria de um monstro. O Douro foi tirano, foi titâ. E tal como Cronos sofreu, à força de braços a vingança dos filhos dos montes que o ladeiam.
Quebraram-se cachões onde as aguas se torciam entre os penedos, onde o arrais falhando o rumo precipitaria a embarcação para o fundo dos sorvedouros de homens e caibros. E o rio beberia o fruto da lavoura, penhor pelo desafio.
Abriram-se pontões, furaram-se torres de granito onde os barcos se amarravam esperando e ouvindo o arfar dos bois, segurando contra a corrente os que subiam.
Mas ainda assim o rio tinha carácter, brincava com os sentidos, pausava a sua fúria num palmo de trecho e permitia que contemplassem os matos desbravados, os arroteios feito vinhas, e quem as cuida soldados vigilantes do senhor da terra, o veio de sangue de Torga.
Confrontemos as agruras dos lugares fatais com uma descrição de trinta de setembro de mil oitocentos e trinta e nove:
"Vogamos com a corrente,que não era para consentir que o redobrar dos remos nos roubasse veloz à perspectiva dessa maravilha rara, talvez única. Eram seis horas e meia. A Regoa e a bela Ribeira de Jogueiros, e todos os oiteiros do famoso Penaguião haviam desappareido detraz da volta do Santinho. O rio, desviando-se ostensivamente para a esquerda [...], como quem lhe custa largar um ponto de vista, que o encanta; perdendo enfim a mira desses sítios deliciosos quebra aqui rápido para a direita e precipita-se sobre as Caldas do Moledo, carrancudo, e murmurando."*
Ironia, que o medo do murmúrio, em nada teve a ver com as paredes de betão que hoje se erguem rio acima. Pra isso a linha férria serviu. Não faltou aos homens a temeridade de ver-se sorvidos pela espuma. 
E se o corpo agora repousa porque as águas espalham as margens, a alma, essa, que lhe aconteceu? O espelho que não foi a tempo de ter ninfas porquanto essas servem mais capitais margens tem, nos intervalos das ondas, o esgar das nossas caras. Gozamos a planura aquatica com o escárnio pelas forças que moldaram este vale. Elevamos o engenho humano e recostamo-nos olhando. Mas miramos as alturas plantadas com o orgulho de provas dadas repousando num qualquer banco debaixo da sombra.
Quão belo, domámos um rio, e ele, domou-nos a nós.


 *Chronica litteraria da nova academia dramatica, volume 1, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1840




Régua, 10 de Agosto de 2016
Luís Quinas Guerra

1 comentário:

  1. Um belo..excerto... !!
    ALMA ...CORAÇÂO ...VIDA...
    O DOURO....

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