quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Senhor Cardiano




Eu sabia que falhas como a que lhe vou passar a referir teriam que acontecer, quando me abalancei as escrevinhar duas coisas sobre o que vivi no meu tempo. Na verdade, eu deveria ter sido menos apressado em satisfazer-lhe o pedido que me fez, devendo, antes, ter acumulado metodicamente as que me iam saltando da memória, até que eu próprio viesse a chegar à conclusão que todo o historial já se esgotara. Assim como fiz, várias questões foram inevitavelmente omitidas.
Nesta oportunidade, penso que teria ficado bem incluir, no grupo das pessoas típicas do meu tempo, uma, que, realmente, nunca mais esqueci e que ainda retenho bem na minha mente. É a do senhor Cardiano, homem que me impressionava pela maneira como dificilmente andava, apoiado num grosseiro bengalão, a caminho da sua casa, próximo do asilo. Ele teria, por volta do ano de 1935 – ainda eu era rapazinho – talvez já mais de 60 anos, ao que me parecia. Era um homem baixote, pesado, arredondado de formas. Desfilava na rua, vestindo roupas de cotim, botas grossas, chapéu bem largo, que dava para ser utilizado nas vinhas, se preciso fosse. Do bolso das calças, do lado direito, dependurado e bem saído, salientava-se, vistosamente, um grande lenço tabaqueiro, de cor vermelha e muito em voga, dos que mais usavam os trabalhadores das vinhas.
Daquilo que eu julgava saber dele, tinha-o como um extraordinário e respeitável tanoeiro, que os proprietários do Douro procuravam afincadamente para o preparo do vasilhame. Julgo que se tornou, com o andar dos tempos, também um excelente provador, ouvido quando conveniente. De tanoeiro, passando a provador, breve passou a proprietário, juntando fortuna. De letras, julgo que pouco saberia, mas tinha revelado dotes suficientes que o tornariam respeitável.
No Colégio de Lamego, conheci e fui amigo de dois netos seus, que, creio-o, seguiram carreiras mais ilustres, para os lados do Porto. Nunca mais os vi. Mas, agora, que me lembro do seu avô, acho oportuno relembrá-lo, com o respeito devido a um homem de trabalho, talvez um homem merecedor de algum estudo, que poderia vir a descobrir que este senhor Cardiano foi um daqueles que ajudou, dentro da modéstia da sua figura, a engrandecer o nosso Douro, com a arte das suas mãos e com os dotes papilares da sua língua.
Creio que ficará bem, no relatos que fiz, o enquadramento deste raro trabalhador - de que já não existirá hoje qualquer referência. Guardo dele respeitosa memória. Nunca lhe dirigi uma palavra, mas, quando o via passar, eu bem o olhava com toda a minha curiosidade, até porque o “senhor Cardiano” era um homem diferente de todos os outros da nossa comunidade.

Coimbra, 30 de Abril de 2013

Abeilard Henriques Vilela

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