segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Noite de Reis



O médico e escritor João de Araújo Correia


"Noite de mais amenidade, tocatas e cantigas, blandícias e picardias, era a noite de Reis. Quem tinha sangue na guelra, unhas para tocar ou voz que não destoasse, não parava em casa. Era núcleo de foliões ou juntava-se a eles para cantar os reis. Cantava-se à porta de gente sossegada, que não saía de ao pé da fogueira e tinha de seu nozes e figos ou algum dinheiro para convidar os ranchos de cantores.
Quem tivesse amor à originalidade ou quisesse distinguir-se da ralé, fazia uns lindos reis, versos da sua lavra adaptados ao compasso de músicas oriundas de velhas operetas. Procediam assim lavradores engravatados para cumprimentar gente da sua igualha. Cantados e tocados semelhantes reis, no pátio alpendrado ou no quinteiro, logo se agradecia tão alegre surpresa. Entrava-se à sala de visitas, com sofá e cadeiras de palhinha, e aí se comiam doces e se regavam com jeropiga ou vinho generoso.
O povo miúdo não puxava pela cabeça para cantar os reis. Servia-se de velha toada e velha letra, enchia o saco e … ala! Vamos agora ao senhor Manuelzinho, que sempre nos dará alguma coisa.

Quem diremos nós que viva?
Viva o senhor Manuelzinho
Viva o tempo que deseja
Viva também uma rosa
Que recebeu na igreja.

Quem diremos nós que viva?
Viva a menina Amelinha
Vestidinha de cambraia
Quando se chega à janela
Alumia toda a praia.

Quem diremos nós que viva?
No grãozinho do arroz
Viva o menino Agostinho
Por muitos anos e bôs.

Quem diremos nós que viva?
Na copinha do chapéu
Viva a menina mais nova
Que é um anjinho do céu.

Quem diremos nós que viva?
Não queremos ficar mal
Viva um e vivam dois
Vivam todos em geral.

Às vezes, os reis eram um pouco satíricos. Eram como pulhas, que os alvejados repeliam, abrindo a porta e brandindo o marmeleiro. Condenados! Toca a fugir. Pernas, para que vos quero? Aqui e além, ficava um soco na lama.
Recordem-se estes costumes, que vão fenecendo de ano para ano. Prendam-se ao papel como se prendem, em museu etnográfico, objectos que deixaram de ser companheiros do homem. Guardem-se com os pinhões e o rapa. Estes e outros feitiços são hoje figuras de retórica. Há por aí menino que nunca viu pinha de pinheiro manso."

1-1- 1966
João de Araújo Correia In "Horas Mortas"

1 comentário:

  1. Gostei de ler estas "lembranças , ..de outrora..
    as "noites de reis" , mais bonitas ..mais"..
    ricas"..
    e tão simples..

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