segunda-feira, 22 de maio de 2017

Aula da mestra régia





As escolas de primeiras letras...Cerro as pálpebras e vejo-me, aos quatro ou cinco anos, na aula da mestra régia de Canelas. A minha irmã mais velha levava-me à lição para eu não brincar com a canalha da rua. Ia todo contente, porque não apanhava bolas, não tinha ABC nem cartilha – passava as horas entretido com um regrão a desenhar macacos numa loisa.Dava-me muito mimo a Senhora Mestra e as meninas grandes. Recordo-me da Laurinha, que era muito branca e tinha na face uma cicatriz riangular, pequenina, junto da coomissuras dos lábios frescos.Beijava-me. A cicatriz esvoaçava como um insecto doido no clarão dos seus olhos castanhos.
Não se abria a janela da escola nas manhãs cálidas. O sol alegrava o traço da porta.Avançava, marcando os minutos no sobrado escuro.Os raios que desciam da telha vã projectavam-se na cabeça guedelhuda das raparigas da aldeia ou sujavam o chão com nódoas de luz, moedas de oiro reluzente que eu chocalhava na palma da minha mão. Não havia carteiras. As alunas ricas sentavam-se em cadeirinhas de pau ou de palhinha. As pobres alastravam-se no chão, quando muito em bancos de pinhoo, lustrosos de atrito das saias de riscado. A própria senhora profesora amesendava-se num esteirão. Sobre o regaço, poisava-lhe numsa pasta de veludo, obra asseada, onde quero enxergar ainda umas flores amarelas. Esta pasta e a menina-de-cinco-olhos eram o ceptro e manto da realeza absoluta da Senhora Mestra.
Era feia. Picada de bexigas, olho sarcástico, mãos finas, tinha pieira no peito agasalhado de xales...Aninhada, nem galinha choca a ensinar pintainhos...
-Anda cá tu, minha cara-de-ovelha...
Tinha jeito, para pôr alcunhas. Mero ouvinte do seu colégio, só eu me posso gabar de não ter sido crismado pelo seu satírico engenho. Dava-me muito mimo. Fico a adorar-me, quando me descobriu a precoce habilidade, que perdi, de caricaturar na pedra com giz fácil, tanto a Cara-de-Ovelha, como outros carões da sua embirra. O meu génio completava o seu.
(...)
Ó alma da minha mestra régia! É meio-dia na quadra onde davas lição, mestra velha, sentada na tua esteira, com a pasta de flores amarelas no regaço.
É meio-dia. Vamo-nos embora. Deite-nos a sua bênção!
Meio-dia. Desgraçadas escolas, onde é sempre meia-noite...



 JOÃO DE ARAÚJO CORREIA,  in "Sem Método", nota LXVI.

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