quinta-feira, 19 de março de 2015

Douro







Teresa Pizarro Beleza

Goethe, afinal, enganou-se. O “Balcão da Europa” não é em Dresden, na Alemanha, mas aqui, no Norte de Portugal, na periferia (ou semi, se assim preferirmos). Nas margens onde, afinal, se compreende o centro. Por aqui passou a Guerra Peninsular e aqui se digladiaram liberais e absolutistas, como recorda António Barreto no seu Douro (Inapa) “um livro escrito com paixão”, como me faz notar o meu anfitrião — a paixão não fica mal a um sociólogo, nem mesmo a uma jurista.
Estou sentada em frente de uma das mais belas vistas do mundo: o Alto Douro olhado de Casal de Loivos, sete quilómetros a Norte do Pinhão, sempre a subir. No centro da Região Demarcada do vinho do Porto e dos vinhos do Douro. Aqui onde as relações semi-coloniais entre a Inglaterra e Portugal solidificaram — tão claramente explicadas em Trade and Power — Informal Colonialism in Anglo-portuguese Relations de Sandro Sideri, que eu estudei com com avidez e afinco há uns vinte anos atrás, saberá Deus porquê.
O Douro é a memória da origem do meu Avô paterno, o resto de terra que já não é nossa, as cerejas brancas rijas e doces da minha infância, que chegavam a Lisboa depois de uma longa viagem iniciada no Pinhão. Da talha cheia do melhor azeite do mundo na despensa da minha Mãe, que às vezes se entornava um pouco por descuido de algum de nós. Das nêsperas dulcíssimas e serôdias, que nos davam a volta à barriga depois de um ataque incontrolável de gula. E, é claro, das uvas. As uvas doces e insubstituíveis de quando eu era criança e pensava que um dia poderia conhecer essa terra mágica de onde nos chegava, misteriosamente, aquela doçura sumarenta em cestos largos e não muito fundos, de sólida construção artesanal, tisnados pelo uso como os “cestos vindimos”. Morro de vontade de levar um para casa, ou mesmo dois — são tão bonitos! — para arrumar qualquer coisa (o pretexto é irrelevante...) mas como o levarei no comboio, com greve à vista e tudo? A viagem Lisboa-Régua foi longuíssima e aventurosa: quase oito horas de comboio — e, nas quatro iniciais, com o frenesi dos telemóveis a, por uma vez, dar-me uma enorme vontade de rir (normalmente, desenvolve em mim instintos assassinos, que contenho com alguma dificuldade).
Mão amiga colocou na minha um exemplar da Teoria geral do sentimento de Nuno Júdice. É um dos poetas contemporâneos de que mais gosto. Pela primeira vez, tenho consciência da sua evidente filiação Borgiana e pela milésima o prazer de reconhecer afinidades electivas: Lord Byron, Emily Dickinson... A poesia de Júdice liga bem com o Alto Douro, ainda que implique o desviar temporário do olhar para longe das curvas do rio e da vinha. Mas o coração também tem de parar e respirar — como lembrou o próprio Byron num dos seus mais conhecidos poemas (“So we’ll go no more a-roving...”).
Enquanto o comboio anda e não anda, recordo o fim do Verão de 1988, em que fiz o que creio ter sido uma das últimas viagens ferroviárias da Régua a Barca d’Alva.
Quando embarcámos na Régua e consultámos os horários na estação, concluímos que o comboio já não passava além do Pocinho. Só algum tempo mais tarde nos apercebemos de que a viagem prosseguia até Barca d’Alva, o nosso objectivo. Aí me lembro de almoçar gostosamente num lugar acolhedor e modesto e de ver uns enormes pães redondos (devo ter comprado pelo menos dois ou três, é o mais certo). O túnel que abriga a via na passagem da fronteira — via que se prolongava até Salamanca — estava entregue aos morcegos (que maravilha seria, poder ir de comboio do Porto a Salamanca, duas das mais belas cidades da Península!).
Creio que foi já no regresso, no troço Barca d’Alva- Pocinho, que o Revisor e o Maquinista nos acolheram na cabine da máquina. Contaram-nos histórias fascinantes, desde as técnicas rápidas de espalhar informação sobre greves ou outras acções de protesto de que os ferroviários dispunham pela natureza do próprio meio onde trabalhavam, no tempo do Estado Novo, até à progressiva degradação da via e à vandalização dos apeadeiros, com a instigação ou cumplicidade das companhias de camionagem, que viam no comboio o último rival. Em alguns pontos, a velocidade — eu ia observando o velocímetro — descia aos 20 ou 10 kms/hora...
A viagem é de uma beleza impressionante — como poderá saber quem se recorda dela ou quem conhece o percurso feito de barco. Ainda não experimentei esta última versão, em parte porque quero guardar intacta aquela recordação mágica, em parte porque tenho um secreto receio de que os barcos que fazem a exploração comercial da subida do rio tenham qualquer ideia sinistra de “música ambiente”, “entretenimento a bordo” ou qualquer outra dessas maléficas invenções da moderna ciência de estupidificação em massa dos turistas.
Voltarei em Novembro, se não vier antes, a pretexto da última sessão, em Provezende, de umas jornadas sobre o Douro organizadas pela Fundação Miguel Torga (Como o rosto dele se parecia com os traços mais agrestes da terra fria transmontana... como a sua capacidade de descrever emoções era próxima da beleza comovente das linhas quase Kandinskianas das vinhas do Alto Douro...)
Nessa altura, a vinha estará rubra do Outono e eu sei que a paisagem melancólica e belísima me fará pensar que aqueles vermelhos são também o rasto do sangue dos supliciados na Revolta do Porto. Recordarei a vivíssima descrição de Arnaldo Gama (Um motim há cem anos — uso a edição de 1949, Porto, Livª Simões Lopes, de M. Barreira). E as palavras (citadas no prefácio de Fernando Pires de Lima) em que Ramalho Ortigão ridicularizava — como só ele sabia fazer — as “ tantas sátiras dissaboridas e tantas parvidades com pretensões maliciosas” dos críticos que desdenhavam a escrita do “laborioso e honrado escritor”. E o sangue dos operários galegos que, sem condenação, ali sofreram a dura pena de trabalhos forçados. Imagino esses escravos a partir o xisto e as costas, construindo os socalcos debaixo do sol impiedoso... (Quererá José Saramago, se o Nobel o deixar em paz, escrever um “Memorial do Douro”?). Mas esse lado trágico da beleza do Alto Douro, a que se acrescenta ainda a secura eloquente dos “mortórios”, é-lhe tão essencial como os desenlaces fatais da grande dramaturgia clássica. E onde já se viu paixão como deve ser sem tragédia, amor digno desse nome sem sofrimento?
Com a devida vénia — assim rezam os costumes na minha profissão — transcrevo parte do final de um dos textos de José Saramago de que mais gosto: Viagem a Portugal (Lx: Caminho, 1996; uso a 14ª edição):
(...) O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. [O viajante volta já.]”

 In jornal "O Público" de 26-05-99 

Sem comentários:

Enviar um comentário