domingo, 25 de dezembro de 2016

História de um presépio



Chama-se Bárbara a cliente mais nova da minha cliníca particular.Tem agora cinco anos, saudavéis desde a primeira hora. Se a incluo na lista dos meus doentes afeiçoados é porque vou lá a casa por tudo e por nada, ao toque de aflitivos telefonemas. Quando chego, a porta está escancarada e a mãe de olhos esbugalhados não sabe o que fazer às mãos. O pai, ou já anda de um lado para o outro, ou chega, pouco depois, pressuroso como um bombeiro.
Encontro a pequenita sempre fardada de doente - barrete na cabeça e saco de água quente aos pés, mesmo no verão...Para sossegar os pais, e não vá o diabo ser tendeiro, faço sempre um exame tão meticuloso quanto a minha paciência o consente. Pergunto mil coisas, palpo a barriga, vejo a garganta...Os minutos mais angustiantes do exame são os do termómetro, solenemente espetado no rabito da menina. Nada...A Bárbara nunca tem nada que mereça tanta correria. Para salvar os pais da encavacadela, receito umas gotas ou uns supositórios inocentes, depois de uns segundos de profunda reflexão.
A Bárbara é uma criança inteligentíssima e nada mimalha, apesar de ser o "menino Jesus onde te porei" de toda a família. Há muito se apercebeu do exagero dos pais a respeito da sua saúde e da subtil ironia com que a observo. Muito discretamente, vamos trocando sorrisos de ansioso silêncio.
Nada diverte mais a minha doentinha, depois do exame, que o meu interesse pela saúde das suas bonecas...Pernas partidas, manchas horrorosas pelo corpo, grandes peladas, olhos vazados...Fica encantada quando aconselho a ida a especialistas a que ponho nomes estapafúrdios.
-Esta de tem de ir ao Dr. Fagundes Rocócó...Só ele a pode salvar!
O Natal da Bárbara é o mais ruidoso e luminoso de todas as crianças que conheço. Filha única e sobrinha única, não há brinquedo que não lhe entre em casa. A árvore de Natal fica sempre horrorosa de tanto brinquedo pendurado. É claro que eu não tenho mais que gabar, só para lhe ver os olhitos azuis brilhantes de satisfação.
Milagrosamente, este Natal não foi preciso salvar a Bárbara de nenhuma trabuzanada.Mas ontem, dia 4 de Janeiro, telefonou-me ela própria em tom de segredo.
- Sou...sou a Bárbara!...
-Olá Bárbara! Estás boa?
-Estou...
-Este ano não vi tua árvore de Natal!...ficou bonita?
-Não fiz árvore...fiz presépio! Está muito lindo...gostava que o viesse ver...
-Vou vê-lo, logo que possa. Juro! Um beijinho...
-Dois...
-Linda! Adeus...até logo.
Lá fui pelo fim da tarde. A Bárbara, que estivera de atalaia, levou-me pela mão desde a porta da rua. Não calculam a dificuldade que tive para não me rir. São José e Nossa Senhora mal se viam no meio de tanta bicharada: dois burros, três vacas, uma zebra, um galo, dois macacos pendurados, um leão, um porco e um jacaré! Tudo em redor de quatro bonecos, um deles preto, deitados no sítio do Menino Jesus.
- Está muito bonito, Bárbara. Mas olha que a Nossa Senhora só teve um menino - disse eu, tentando salvar o principal.
-Sabe lá!
Não havia nada a fazer. Saí de lá convencido de que cada criança tem o seu presépio.


Camilo de Araújo Correia  in  "Histórias do Fim do Ano" 

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